Elas têm a força

As personagens dos quadrinhos povoam a mente das meninas e contribuem na construção do feminino.

13/02/2014 19:06 / Por: Camila Barbalho/ Imagens: divulgação/ internet
Elas têm a força

Traçadas no papel, elas vivem aventuras, ensinam lições, questionam, transgridem. Falam bobagem, se descabelam, arrancam risadas. Incomodam-se com a política, com filhos, pais, homens. Viajam pelo espaço. Do lado daqui, nós – de carne e osso – acompanhamos seu desenrolar, em paralelo aos nossos próprios desdobramentos. Afinal, a história que a menina, no meu quadrinho preferido, conta é a minha? Ou eu reproduzo do meu jeito a história dela? Foi desse jeito, nessa frutífera troca, que meninas do mundo inteiro cresceram: ora se reconhecendo nas personagens femininas das HQs, ora reconhecendo nelas quem gostariam de ser. Meninas como Luluzinha, Mônica, Magali, Mafalda; mulheres como Rê Bordosa, Radical Chic, Barbarella; as alteradas de Maitena – todas elas exerceram um papel importante na construção da identidade da mulher contemporânea. São feitas de tinta. E, à sua maneira, reais.
Pertinho do Dia Internacional da Mulher, a Revista Leal Moreira homenageia essas figuras emblemáticas da cultura pop, que ajudaram a moldar o caráter das meninas (ou adultas, por que não?) que as acompanharam – e escreveram páginas e páginas da saga feminina ao longo da história.

Pequenas notáveis

É difícil ser criança no Brasil e passar imune ao carisma da turminha criada por Maurício de Souza. Mônica, a protagonista, é uma criança cheia de personalidade. De pavio curto, a garotinha, que não leva desaforo para casa, é uma das primeiras referências que vêm à mente de quase todas as leitoras de quadrinhos. Mônica de Souza, a inspiração para a criação do pai Maurício, sabe disso. O desenho já completou 50 anos e ainda segue encantando gerações. Mônica – a real – arrisca um motivo. “Ela continua falando de temas naturais e atuais. É uma menina forte, destemida, como muitas mulheres”. Apesar de ter sido inspirada em seu próprio comportamento, ela não achava que a personagem fosse tão verossímil. “Não acreditava que uma criança poderia ser assim, achava que era exagero de meu pai... Até ter minha filha. Ela era a Mônica vezes dois”, conta entre risadas.

Mônica entende que não é difícil se identificar com a baixinha criada por seu pai. Por quê? Porque ela guarda em si aquelas coisas que estão no coração juvenil de quase todo mundo. “A Mônica, mesmo sendo temperamental, continua acreditando no amor, no compartilhamento de ideais entre homens e mulheres. Ela é sensível, é vaidosa... a única diferença (em relação às demais meninas) é que ela é braba, como eu”. Para a musa dos quadrinhos, a personagem permanece com o mesmo frescor de meio século atrás porque acompanhou a evolução do papel feminino na sociedade. “As mulheres mudaram, os tempos mudaram. Temos liberdade de expressão e responsabilidade por nosso futuro, não existe espaço para que a mulher coloque sobre os ombros dos homens as suas ambições”, considera. “Atualmente trabalhar fora é natural para as jovens, elas fazem suas opções sobre ter filhos, ficar solteira, casar-se. As mulheres de hoje são responsáveis pela própria felicidade. Isso não é maravilhoso?”.

A doutora em Letras Amarílis Tupiassu também lê as aventuras da “turma”. Ela destaca que, de maneira sutil e divertida, as personagens se antecipam na quebra de barreiras que ainda existem na vida contemporânea. “Nossas personagens brasileiras são maravilhosas. A Mônica, quem diria, tem força física! Ela rompe com a ideia de sexo frágil”, aponta. “No universo do Maurício de Souza ainda tem a Magali – uma garotinha que quer ter a liberdade de comer num mundo onde mulheres vivem de regime, onde se decretou que a beleza tem que ser magra. É assumir uma postura corajosa, de qualquer maneira”.

Mas antes mesmo do clássico grupinho de Souza, outra garotinha chamou a atenção da professora pelas pequenas mudanças que sugeriu – ou refletiu – no seu tempo. Criada em 1935 por Marjorie Henderson Buelle, a Marge, Luluzinha ganhou seu próprio gibi dez anos mais tarde. Naquela época, a pequena já causava suas microrrevoluções. “Pra mim, Luluzinha é um marco. Na década de 40, ela já deixava de ser um personagem feminino apático para enfrentar os meninos. Ela inclusive tem uma amiga, a Aninha, que é ingênua; e Luluzinha a incita pra que ela se posicione”, diz Amarílis. Ela também faz considerações sobre Bolinha, o garoto que perturbava a protagonista. “A personagem Bolinha, embora nesse universo infantil, é opressiva. Essa ideia do ‘Clube do Bolinha’ ainda hoje existe. É um marco social, isso de que homens se reúnem em um lugar e mulheres devem se reunir em outro. A Luluzinha é quem insiste em querer quebrar essa lógica”.

Tais garotinhas – marcantes pelo seu destemor, bom humor e personalidade – foram as melhores amigas de muitas meninas durante a infância. Mas à medida que o tempo passa, as meninas se tornam mulheres. Também adultas se tornam suas referências: mulheres fortes aparecem nas HQs, reforçando a ideia de empoderamento. E com grandes poderes vêm...

Grandes responsabilidades

Quando mulheres adultas apareciam em quadrinhos, pelo menos em princípio, exerciam papéis essencialmente de par romântico do protagonista masculino. “Eram personagens que estavam numa espécie de ‘fauna acompanhante’ do heroísmo do macho. Elas exerciam um apelo sexual, chamavam o público à revista pela beleza. Todas elas já expunham o corpo, este sempre muito sarado, muito jovem. Mas como companheiras, eram submissas”, avalia a professora Amarílis. A personagem a dar o primeiro passo, em direção à quebra dessa lógica, foi também a primeira heroína da DC Comics: criada em 1941, a Mulher-Maravilha era filha da rainha das amazonas, era forte, voava, tinha uma agilidade sobre-humana.

Seu criador, William Moulton Marston (ou Charles Moulton, como assinava), era um psicólogo que flertava com ideais feministas. Sua ideia – combinada a um empurrãozinho de sua esposa Elizabeth Marston – era criar uma personagem que triunfasse não apenas pela agressividade, mas pelo amor. O desenho, claro, tornou-se um grande sucesso. Mais que isso, tornou-se referência de como a mulher deveria ser: forte, mas bonita; incisiva, mas doce. “A Mulher-Maravilha aparecia explorando a beleza e a transposição de barreiras. É o símbolo de outro tempo, de outra mulher. Até hoje se descreve uma mulher que dá conta de tudo como ‘Mulher-Maravilha’”, diz Tupiassu. A assessora de imprensa Monique Malcher, que lê e estuda quadrinhos desde os tempos de colégio, também enxerga na personagem – ressalvados seus méritos – algo de limitador. “A forma como ela era desenhada acabou mudando com o tempo, apelando muito mais para suas formas físicas. E isso não é tudo. Diana (nome que esconde sua identidade secreta) é inteligente e tem temperamento forte”.

Um pouco mais à frente, na década de 60, outra personagem acompanhou os rumos da revolução cultural que o período viveu – e causou bastante barulho.

Barbarella, criada pelo francês Jean-Claude Forest, era o retrato da liberdade que assustava. “Quando ela surgiu em quadrinhos, ela escandalizou tanto que a publicação chegou a ser proibida. Mas a personagem exerceu uma influência tão grande que a proibição foi sendo esquecida”, conta Amarílis. “A Barbarella era avançadíssima. Era aventureira, uma viajante espacial, sexualmente livre... Enfrentava perigos e cafajestes”. O filme, feito em sequência, transformou a atriz Jane Fonda no sex symbol de uma geração. Ainda assim, a personagem carregava a beleza e a coragem como suas características principais – assim como a Wonder Woman.

Barbarella e Mulher-Maravilha tiveram uma grande responsabilidade: transformaram-se em heroínas, símbolos, ícones da capacidade feminina. O que mais era preciso alcançar, então? Bom, os tempos seguiram mudando. As mulheres também. Com o passar dos anos, elas não queriam mais ser “super”. Queriam relaxar e curtir a liberdade de ser adultas e modernas em uma sociedade um pouco mais liberada.

Moderninhas

Anos 80. O Brasil saía da repressão, o rock nacional dominava todas as paradas... Era um momento de descontração, e todo mundo parecia estar no mesmo clima. Lá vinham as personagens de quadrinho acompanhando o ritmo. Desenhadas por homens, Rê Bordosa e Radical Chic foram sucesso de público que divertiram as moderninhas da década mais divertida que o país já viu.

Criada por Angeli, a Rê Bordosa é uma remanescente da contracultura, uma sobrevivente da loucura dos anos 60 que simplesmente parou na época do Woodstock. Sem dúvida, a personagem não é edificante e tampouco serve de modelo. Ao contrário: é cheia de manias, vícios, complicações – e, graças à sua falta de bom senso, muito engraçada. Talvez por toda essa “humanidade”, sua imperfeição foi um sucesso tão grande que se tornou maior que todas as outras coisas feitas pelo cartunista. “A Rê Bordosa é uma mulher adulta doidinha, que bebe, é ninfomaníaca, fala o que pensa, é cheia de humor ácido. Ela foge do estereótipo das mulheres recatadas”, defende Monique Malcher. Ela conta que tem uma relação de afeto e identificação com o desenho. “Não sou nenhuma Rê Bordosa, mas minhas decisões pessoais sempre foram consideradas ‘ousadas’. Saí de casa cedo pra morar sozinha, e as histórias do Angeli me faziam rir e me davam a segurança de que uma mulher precisa se arriscar”.

Radical Chic, a outra moderninha que caiu nas graças das mulheres brasileiras, também era livre e cheia de personalidade. Porém, sua abordagem era outra: ela representava a mulher cosmopolita, independente. Talvez tenha sido a primeira personagem nacional a falar diretamente para as mulheres. Foi um sucesso total, indiscutível. Miguel Paiva, seu criador, admirava muito o tipo de mulher que sua cartum retratava. Daí veio sua inspiração. “A Radical foi resultado da minha admiração pelo humor feminino, pelas mulheres em geral e pela fase em torno dos 30 anos, que era a que mais admirava na época. Talvez porque a mulher ainda preserva a irreverência e a loucura da juventude, mas já rodou 30 mil quilômetros”, explicou ele há alguns anos, em entrevista à jornalista Mari Valadares. “Considero-me um curioso, um pesquisador da alma feminina. Tenho admiração pelo universo feminino, gosto de como as mulheres interpretam a vida e isso me atrai”. Analaura Corradi, professora de comunicação, está entre as muitas jovens da década de 80 que se encantaram com o desenho. “Radical Chic representou bem o papel feminino. Foi uma forma de grito-manifesto da nova mulher, renascendo numa sociedade opressora tanto politicamente como culturalmente”, considera.

Um pouco mais tarde, já nos anos 90, uma quadrinhista mulher criou uma das séries voltadas para o público feminino que obtiveram maior aceitação e entusiasmo no mundo. A argentina Maitena não criou uma personagem, mas sim um conceito: “Mulheres Alteradas” apresenta várias anônimas lidando com problemas que mulheres lidam todos os dias. O mercado de trabalho, o casamento, os filhos, a obrigação da vaidade, os hormônios – enfim, as dores e delícias de ter nascido com dois cromossomos X. Da tirinha de jornal, veio o livro. Do livro, a sequência de cinco publicações e mais a continuação, chamada de “Superadas”.

O diretor de teatro Eduardo Figueiredo assinou a adaptação das duas obras para os palcos. Ele conta que foi cativado pela honestidade dos desenhos. “O que me chamou a atenção foi o humor inteligente e ácido da autora. Os temas abordados por Maitena são universais. A mulher contemporânea tem uma identificação imediata. E os maridos também começam a enxergar melhor as mulheres que fazem parte da sua vida”. A peça, protagonizada pela atriz Mel Lisboa, bate recordes de público a cada temporada. Para ele, apresentar as fraquezas e dificuldades do gênero de um jeito leve é o grande trunfo da cartunista. “Ela retrata a mulher que vive neste momento contemporâneo e tem de assumir e dar conta de uma série de responsabilidades. Para isso, precisa ter humor! As mulheres, em especial, são vitoriosas por dar conta de uma série de atividades em sua rotina que nós homens nem imaginamos”.

Menção honrosa

Se há uma personagem que não se prende às referências temporais, essa personagem é Mafalda. A enfant terrible criada pelo argentino Quino é contestadora, inquieta, atrevida. Reflexo da personalidade de seu autor, a garotinha tornou-se um grande ícone de opinião e leitura de mundo. “Eu venho de uma família de classe média. Tem gente que critica a Mafalda e diz que ela é aburguesada. Mas eu sou da opinião de que se deve escrever só o que se conhece”, disse Quino em entrevista à sua conterrânea Maruja Torres. “No fundo, eu desejo melhorar o mundo. Um dia alguém disse que eu sou um amargurado com uma migalha de esperança. Acho que a definição não é má. Mafalda também é assim”. Umberto Eco também escreveu sobre o desenho. “Mafalda é realmente uma heroína ‘enraivecida’ que recusa o mundo tal como ele é”, descreveu. “Já que nossos filhos vão se tornar – por escolha nossa – outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmos Mafalda com o respeito que merece um personagem real”.

A pequena é unanimidade entre as leitoras de HQ. A combinação entre a naturalidade de criança e a firmeza dos posicionamentos criou um carisma indiscutível para o desenho. Não à toa, é a personagem eleita por todas as entrevistadas dessa matéria como a mais importante no que diz respeito à identificação com a mulher contemporânea. “As colocações de Mafalda são atemporais, e retratam bem o cotidiano. Ela, junto de seus amigos, me acrescenta que todos refletem uma parte da sociedade; e que devemos ver e enfrentar os problemas do mundo de maneira direta, prática e bem-humorada”, opina Analaura Corradi. Monique Malcher complementa: “Mafalda, digo sem pestanejar, é a personagem que mais me influenciou. Com a sua verborragia e eloquência, ela consegue mostrar as boas qualidades de uma personagem feminina, que precisa olhar para o mundo com esse olhar crítico”. Quem finaliza é Amarílis Tupiassu: “A Mafalda é uma mulher que pensa! É ardilosa, é sagaz. Ela tem todo um lado filosófico de interpretação da vida. Ela sai do reduto da mulher que tem que se impor como mulher. O papel dela é outro, é o sentido crítico social, político, dos costumes. A Mafalda está acima da divisão homem-mulher, como as mulheres do nosso tempo também estão acima de uma divisão tão limitadora e ingênua”.

Meninas, mulheres, exageradas, caricatas, reais. As personagens de HQ que influenciaram e foram influenciadas pelo gênero feminino ao longo da história revelam aspectos importantes da sociedade. “A tendência dos quadrinhos é retratar as mulheres como a cultura geral as vê, e até mesmo como elas se deixam representar. Personagens marcantes como Mônica, Mafalda, Rê Bordosa, Luluzinha ou mesmo as super-heroínas sexies da Marvel estão representando a cultura que a sociedade atua. Como em tudo, tem o que é ideal e o que é controverso”, discorre a professora Analaura. Amarílis Tupiassu, leitora ávida de quadrinhos desde a juventude, também analisa a importância das historinhas em meio ao contexto social. “Os quadrinhos espelharam muito esse processo das mulheres para quebrar as barreiras que encerram o que é masculino e o que é feminino. A mulher nos quadrinhos não se desenvolve pelo discurso, mas como espelho do que vai acontecendo em sociedade”, pondera. E arremata: “O quadrinho acompanha toda a saga da mulher, desde os redutos isolados na Idade Média até um ser ativo, pensante e dono de si. Essas personagens são reais, atuais, atentas. Elas pensam o mundo, lutam por suas bandeiras e querem novos horizontes”.

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