Arte e Cultura
Homenagem
Wilson Simonal se encaixa no perfeito arquétipo de pessoa que tinha tudo para não ser nada. Nascera negro em um país racista como o Brasil dos anos 1940. Pobre, filho de uma empregada doméstica e de um pai ausente, e no subúrbio do Rio de Janeiro. E feio. Pelo menos para os padrões estéticos impostos pela TV (com todo o seu poder de influência à época), cujos modelos de beleza eram Elvis Presley ou, um pouco mais próximo de nós, Roberto Carlos, o nosso “Rei” correspondente. Apesar de suas ambições artística e financeira e do jeito considerado “metido demais para um crioulo”, Simonal não escondia a percepção que tinha de si mesmo.
Em entrevista ao Jornal do Brasil em 1970, ele confessou: “Cresci com uma porção de complexos porque era pobre, porque era feio e porque era preto”. Mas, a seu favor, ele teria muito mais do que sorte: poucos anos após ser descoberto pelo guru da MPB Carlos Imperial, que o apresentou em seu programa de televisão e assumiu papel fundamental na carreira do futuro astro, Wilson Simonal explodiu em todo o país para se tornar o primeiro grande ídolo negro da nossa música popular.
Na década de 1960, ele já tinha o público e a crítica a seus pés: era um astro da televisão e do rádio, sendo apontado por muitos como o maior cantor brasileiro. “Ele era um grande entertainer: contava piadas, dançava e dominava a plateia como nenhum artista do seu tempo, fazendo o Maracanãzinho lotado cantar como um coral em que ele era o maestro”, exalta o crítico musical Nelson Motta, lembrando o lendário show de 1969, que reuniu no estádio cerca de 30 mil pessoas, para quem Simonal dirigiu o antológico comando: “Agora os 10 mil da direita! Agora os 10 mil do meio! Agora os 10 mil da esquerda!”. No dia seguinte, os jornais estampavam fotos com a legenda “O maior coral do mundo”. Ele, que não era a atração principal, roubou a cena no show de abertura.
Para se ter uma ideia de sua popularidade, só no ano de 1968 Simonal chegou à impressionante marca de 350 espetáculos e precisou ser hospitalizado, por conta de uma estafa. Imediatamente após o show no Maracanãzinho, a Shell o procurou com a proposta de um contrato de patrocínio sem precedentes. Ele se tornou um dos garotos-propaganda mais bem pagos na história do showbizz brasileiro. Nas ações publicitárias, as marcas logo se apropriavam de seus bordões, gírias e expressões, como “Com champignon!” – que ele inventou com o sentido de “dar um tempero especial”.
Simonal é considerado um dos criadores da chamada “pilantragem”, uma forma de cantar que envolvia certa performance corporal. O gênero musical mais dançante, balançado, direto e popular estourou nas paradas de sucesso dos anos 1960. Versátil, ele experimentou ainda diversos estilos e não fez feio em nenhum deles. Graças ao desempenho nas boates que eram o point da Bossa Nova, em Copacabana, ele recebeu a alcunha de “O Frank Sinatra do Beco das Garrafas”. Além da “fase bossa-nova”, passeou por praticamente todos os gêneros: cantou rock, soul, calipso, samba... Max de Castro, um de seus filhos, que é também músico, defende que o pai foi um precursor e inaugurou uma nova escola de canto no Brasil.
“Ele uniu todas as escolas vocais, desde o cool da bossa nova até a potência vocal, acrescentando uma influência do suingue, na maneira mais criativa de se interpretar uma música. Não somente por saber cantar as notas originais, mas também por criar uma divisão diferente e novas possibilidades de melodias paralelas”, escreveu a convite da Revista Rolling Stone Brasil, na lista em que seu pai é apontado como uma das quatro maiores vozes do país.
No ano de 1967, a Record era a emissora mais prestigiada do País e Wilson Simonal foi o primeiro negro a ter seu próprio programa de televisão em horário nobre, no Brasil, no canal. Consciente da importância de feitos como este, ele compôs, em parceria com Ronaldo Bôscoli, Tributo a Martin Luther King, em que defende a importância da luta negra: “Cada negro que for, mais um negro virá/ Para lutar com sangue ou não/ Com uma canção também se luta, irmão / Luta negra de mais é lutar pela paz / Para sermos iguais”.
A vida de um dos mais polêmicos ídolos da música brasileira é agora apresentada nos palcos em “S’imbora, O Musical – A História de Wilson Simonal”, em cartaz no Rio de Janeiro. Escrito por Nelson Motta e Patrícia Andrade, e com direção de Pedro Brício, o espetáculo faz um resgate do riquíssimo repertório do artista, incluindo as músicas que ficaram famosas em sua interpretação, como “Balanço Zona Sul” (seu primeiro sucesso), “Sá Marina”, “País Tropical”, “Meu limão, meu limoeiro”, “Lobo bobo”, “Mamãe passou açúcar em mim”, entre outras.
Além das canções, o espetáculo recorda momentos históricos em sua trajetória, como o show em que dividiu o palco com Sarah Vaughan, transmitido ao vivo pela TV Tupi, em 1970. Havia uma ligeira preocupação dos diretores com o fato de que, apesar de cantar em inglês, Simonal não era fluente no idioma e iria entrevistá-la. Com todo o seu carisma, antes do dueto de Shadow of your smile, ele ignorou a ficha de perguntas e se dirigiu à cantora: - Miss Sarah, repeat with me: “Vou deixar cair”. Ao que a diva, que não conhecia qualquer palavra em português, respondeu: “Vou deixar cair” – com sotaque, obviamente. Ele sorriu, já com a situação dominada.
Na montagem, o papel-título é interpretado por Ícaro Silva, mesmo ator que viveu nos palcos recentemente outro ícone da música brasileira, Jair Rodrigues, em “Elis, a musical”. Filho de Simonal, Max de Castro é responsável pelos arranjos, fiéis à obra do pai, mas com um tom mais contemporâneo [confira entrevista exclusiva que ele concedeu à RLM no box]. A direção musical é de Alexandre Elias e os mais de 250 figurinos concebidos para o espetáculo têm a assinatura de Marília Carneiro. Já a cenografia é de Hélio Eichbauer, que já assinou a cenografia de inúmeros shows de Caetano Veloso e possui estreita ligação com a MPB.
A morte e a morte de Wilson Simonal
Não seria exagero dizer que Simonal morreu duas vezes. A morte oficial aconteceu aos 62 anos, em novembro de 2000. Após um longo período em que o cantor se entregou à depressão e ao alcoolismo, vivendo um exílio involuntário em seu próprio país. Mas o artista cuja popularidade na segunda metade dos anos 1960 só se comparava à de Roberto Carlos, ícone da Jovem Guarda, já havia morrido décadas antes.
Sua carreira começou a se desestruturar no início dos anos 70, com uma série de episódios e escolhas equivocadas: ele encerrou seu contrato com a TV Globo, brigou com o Som Três, o trio instrumental que o acompanhava desde o início, e desfez o escritório Simonal Produções. Outrora aplaudido pelas massas, Simonal foi condenado ao esquecimento após, em 1971, ter seu nome ligado a um nefasto episódio.
Desconfiado de que seu contador o estava passando para trás, pediu a uns agentes policiais que conhecia no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) que dessem “um susto” no sujeito. O episódio culminou na prisão do cantor, que, posteriormente, em uma espiral de equívocos, foi acusado de “dedo-duro”, a serviço da ditadura militar. Embora nada nunca tenha sido provado, foi condenado a um ostracismo artístico até sua morte.
O diretor de “S’imbora” destaca que a peça é também um importante panorama da política e da sociedade brasileira da época. “Ela não apenas fala da história de um homem, mas sobre nosso país, como era nossa sociedade, não só em termos de preconceitos, mas de conflitos políticos. O que aconteceu com ele tem a ver com o período, talvez não tivesse acontecido em outro contexto histórico”, explica Pedro Brício.
Simonal dizia que após a ditatura, até torturadores e terroristas foram anistiados, menos ele, que se transformou em um morto-vivo.
Alguns, como o próprio Nelson Motta, acreditam que, se não fosse negro, ele teria sido absolvido pela sociedade. Já o jornalista Ricardo Alexandre, autor da biografia do artista, supõe que a opinião dos brasileiros se baseou parte em fatos, parte em lendas “e outras vezes em sentimentos complexos como racismo, paixão e inveja”.
Nos últimos anos, o cantor tem sido lembrado de diferentes formas. Sua obra voltou a ser citada como referência para a black music brasileira na imprensa, foi redescoberta pelo público e por DJs, que tocam suas músicas nas festas. A seus discos e coletâneas que foram relançados, se juntam outras iniciativas, como o projeto Baile do Simonal, organizado pelos seus filhos Wilson Simoninha e Max de Castro; a biografia “Nem vem que não tem” - A vida e o veneno de Wilson Simonal (Editora Globo); e o documentário Wilson Simonal – Ninguém sabe o duro que dei, entre outros projetos.
É como se a realização deste musical fosse uma nova página nesse processo de reabilitação do artista, coroando todo o esforço que vem sendo feito para preservar viva a sua memória. No palco, diante de nossos olhos, a imagem do grande astro Wilson Simonal renasce. Com sua voz potente, humor contagiante, inegável talento e suingue inconfundível. “Alegria, alegria!”, como diria ele. Aquela primeira morte, em que foi condenado ao ostracismo, à depressão e ao anonimato, ficou para trás. Simonal é reabilitado como um dos maiores cantores do país. E é desta forma que será lembrado daqui pra frente. Devidamente perdoado, ele pode finalmente descansar em paz. E pode, por fim, nos perdoar também.