Na década de 1920, a serviço de uma empresa jornalística, o poeta Manuel Bandeira visitou Belém do Pará. O exotismo e a “equatorial beleza” inspiraram no pernambucano versos dedicados à “terra da fala cheia”. Dessa safra, um dos poemas mais conhecidos é “Belém do Pará”, que tem início com a onomatopeia “bembelelém”. A expressão reproduz, em trocadilho, o nome da cidade e a melodia dos sinos. Não por acaso, o som que melhor representa o lugar e seu povo.
Em Belém, muitas são as histórias e os templos de fé. O Círio de Nazaré, a maior festa religiosa do Brasil, ocorre no segundo domingo de outubro e atrai mais de dois milhões de pessoas anualmente. Os devotos vão às ruas e percorrem um longo itinerário, acompanhando a berlinda com a imagem da padroeira dos paraenses, Nossa Senhora de Nazaré. Realizada desde 1793, a festa tem início na Catedral Metropolitana de Belém e finda na Basílica Santuário. Devido a essa tradição, as duas igrejas se tornaram cartões postais da cidade, mas não são as únicas edificações de cunho religioso que contam a história do local.
Foi pelas mãos de um arquiteto italiano, Giuseppe Antonio Landi, que boa parte do patrimônio histórico de Belém se desenhou. Com a presença do estrangeiro, a cidade passou a abrigar construções cosmolitas, que reproduziram o que havia de mais sofisticado nas edificações das cidades italianas àquela altura. Landi residiu na Amazônia por 38 anos e inúmeras foram as suas realizações. No âmbito das igrejas, merecem destaque dois projetos: a Capela de São João Batista e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo.
Tesouro escondido
Para o professor Flávio Nassar, coordenador do Fórum Landi, organização mantida por pesquisadores, professores e alunos interessados na história da Amazônia do século XVIII, a Capela de São João pode ser considerada a “joia” da arquitetura do italiano. “É a mais diferente, pelo tamanho, porte, harmonia.” Segundo ele, há um efeito surpresa na construção, que a torna especial. “Quando se olha de fora, a prevalência de elementos em linha reta não permite imaginar, por exemplo, que há uma cúpula interna.” Em alvenaria de pedra riscada, especula-se que a Capela foi construída entre 1769 a 1772.
Na Igreja de São João, Nassar destaca as pinturas de quadratura, técnica exclusiva da Academia Clementina, escola localizada em Bolonha, cidade natal de Landi. “São as três únicas pinturas deste tipo em todo o Brasil. As obras servem de retábulo ao altar principal e ao altar lateral da igreja”, situa o pesquisador. Restaurada em 1996, a Capela apresenta nave em formato octogonal irregular, coberto por uma cúpula. Foi construída no chamado Largo de São João, no bairro da Cidade Velha.
Altar barroco
O outro santuário, a Igreja do Carmo, data do início do século XVII. “Existia outra igreja no mesmo local, com mais ou menos as mesmas proporções. Era, possivelmente, um dos maiores templos da cidade naquele período”, conta Nassar. O pesquisador explica que, durante uma reforma na fachada da antiga construção, a nave ficou comprometida e foi necessário um restauro, que ficou a cargo de Antônio Landi. “Ele manteve alguns elementos do prédio, tendo projetado somente da porta principal à capela-mor." Da edificação original, foi mantido, por exemplo, o altar Barroco Carmelita. Por essa razão, a Igreja do Carmo apresenta o estilo Neoclássico somente no corpo e na fachada, preservando o interior Barroco. O santuário abriga, ainda, uma valiosa coleção de Arte Sacra, preservada pelo arquiteto.
Segundo Flávio Nassar, além de São João e Carmo, há outro templo em Belém, a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, sobre o qual especula-se uma possível intervenção de Landi. “Não há provas documentais, mas indicações. Certo autores percebem, no projeto, as marcas do trabalho dele”, esclarece. Na fachada, a Igreja das Mercês apresenta frontário em estilo Rococó, estilo surgido na França como desdobramento do Barroco, e pilastras dóricas. É a única igreja em Belém – e uma das quatro no Brasil - que tem frontaria em perfil convexo.
Confronto na praça
A Praça Visconde do Rio Branco, mais conhecida como Praça das Mercês, onde se localiza a Igreja das Mercês, foi o cenário sangrento de um dos confrontos da Cabanagem, movimento popular que estourou entre os anos de 1835 e 1840 no Pará. As lutas expressavam a revolta de índios, mestiços e escravos com a minoria branca, formada pela elite política do Estado. “Quando os Mercedários foram expulsos do Brasil pelo Marquês de Pombal, o Convento das Mercês, anexo à Igreja, foi transformado num quartel, uma espécie de depósito de munição. A tomada desse espaço, durante a Cabanagem, foi um momento histórico decisivo”, pontua Nassar.
O referido confronto ficou conhecido como "Batalha do Trem de Guerra" (1835) e vitimou Antonio Vinagre, um dos líderes do movimento cabano. “Vinagre foi atingido por uma bala na testa. Atiradores do Exército estavam posicionados no alto dos casarões ao redor da praça”, lembra o professor.
De tantos acontecimentos, fica a constatação: em cada fragmento dessas paredes de pedra, na “fé maciça” das igrejas de Belém, como bem observou Manuel Bandeira, se mantém viva a memória de um povo. Um legado infinito, não porque se estende indefinidamente no espaço, mas porque, como a própria História, não tem limites. Que permaneça aceso, na chama de tantas velas, e que os sinos – bembelelém - jamais interrompam seu ritmo.