Gênese urbana na Amazônia

Redescubra como Antônio Lemos mudou para sempre a paisagem de Belém numa época em que a cidade vivia o esplendor da Belle Époque.

14/12/2011 12:38 / Por: Elck Oliveira / Fotos: Diego Ventura
Gênese urbana na Amazônia
A Paris N'Ámérica, um símbolo da Belle Époque, tem arquitetura em art-nouveau e lembra traços das famosas Galeries Lafayette francesas

O fim de ano é sempre uma época para voltar os olhos para a cidade, que ganha uma cara especial com as decorações natalinas e luzes em casas, fachadas de prédios e empresas. Belém, que tem o mesmo nome da cidade onde nasceu o menino Jesus, é também tema de uma exposição que, este mês, coloca em evidência sua riqueza e complexidade. Trata-se da mostra “Janelas do passado, espelhos do presente: Belém do Pará, arte, imagem e história”, em cartaz no Museu de Arte de Belém (Mabe), que marca a reabertura do Salão Verde, fechado por um longo período para uma recuperação. É a oportunidade de ver a metrópole de hoje em sua gênese, a partir do trabalho do político e intendente Antônio Lemos.

Na exposição, é possível refazer o percurso artístico de quase quatro séculos de história da capital paraense e ver, de perto, obras como “Últimos dias de Carlos Gomes”, de Domenico de Angelis e Giovanni Capranesi, e “A fundação da cidade de Belém”, de Theodoro Braga. O valor dos trabalhos está não apenas na sua qualidade artística, mas também na importância do contexto histórico em que foram produzidos: a virada do século XIX para o século XX, momento em que Belém vivia a áurea fase conhecida como Belle Époque (Bela Época, na tradução do francês), período em que Antônio Lemos teve destacada atuação. Responsável por um amplo projeto de modernização da capital do Pará, ele administrou a cidade entre os anos de 1897 e 1910 e foi quem encomendou as duas telas citadas acima.

Maranhense de nascimento, Antônio Lemos lutou na Guerra do Paraguai (1864-1870) e veio para o Pará, onde começou suas atividades como jornalista, passando, em seguida, para a carreira política. Foi com ela e, mais especificamente, como intendente de Belém, que Lemos fez uma série de transformações no espaço urbano da cidade, tais como a “pavimentação de ruas, a construção de praças, jardins e de usinas de incineração de lixo e limpeza urbana”, tudo isso controlado por um código de posturas, baseado em ideias liberais, nas palavras da historiadora, mestre, doutora em história e professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará (UFPA) Maria de Nazaré Sarges, autora do livro intitulado “Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912)”, cuja terceira edição foi publicada ano passado.

Olhar visionário

Segundo a especialista, Lemos preocupou-se em cuidar de “certos aspectos da vida urbana, como saneamento, saúde pública, estética da cidade”, vislumbrando não apenas o momento que se vivia, mas a cidade no futuro também. Este é, para o historiador, mestre e doutor em história e professor da Faculdade de História da UFPA Aldrin Figueiredo talvez o maior mérito do político no seu trabalho como gestor urbano. “O fato é que Lemos teve um projeto de cidade, coisa que não se vê nem nos dias de hoje. Ele não conseguiu executar tudo o que planejou, o que, por um lado, foi bom, já que uma das suas ideias era exterminar, por exemplo, a Cidade Velha, já que desejava acabar com essa face portuguesa, colonial, de Belém”, diz.

Se não conseguiu fazer isso, Antônio Lemos realizou o que há de melhor em termos de ligações na cidade até hoje, destaca o historiador. Foi o intendente – o equivalente a prefeito na época – quem abriu, por exemplo, o Marco da Légua, que seria o que hoje são os bairros do Marco e Pedreira, com ruas como a Vinte e Cinco de Setembro, a Almirante Barroso – antiga Tito Franco e a Duque de Caxias.

Para dar cabo a esses projetos, Lemos articulou, em torno de si, uma equipe de grandes profissionais, brasileiros e estrangeiros. Gente como os engenheiros e construtores José Sidrim (cearense) e Felinto Santori, além do arquiteto Francisco Bolonha e do artista plástico Domenico de Angelis (italianos). Essas pessoas foram responsáveis, por exemplo, por obras como a igreja dos Capuchinhos, o colégio Nazaré, o mercado de São Brás, além de inúmeras residências e palacetes particulares. “Fazendo novamente uma comparação com os dias atuais, a gente vê que a maioria dos nossos políticos, gestores, procura se afastar, se esconder dos intelectuais. O Lemos não, muito pelo contrário. Ele reuniu em torno de si um grupo fortíssimo, de gente da melhor qualidade, entre intelectuais e artistas. Se formos olhar, por exemplo, a equipe que trabalhou na ‘Província do Pará’ na época dele, vai ver que era lá que estavam os grandes críticos de arte, muitos viajantes estrangeiros que por aqui estiveram, escritores. Ele se cercou disso, de intelectuais, de gente capaz de pensar, não só na Imprensa, como também no seu trabalho como administrador”, destaca Aldrin Figueiredo.

Em seu livro, a professora Maria de Nazaré Sarges resume o que o trabalho de Lemos representou: “Os objetivos que direcionaram a transformação estética da cidade se entrelaçavam com as propostas políticas, ideológicas e até mesmo com o gosto dos novos grupos econômicos da região. Embora Lemos não tenha destruído as marcas de uma cidade colonial portuguesa, a configuração de uma nova estética pautou-se pelos símbolos que identificavam uma ‘cidade civilizada’, ao mesmo tempo que criava significados que seriam cristalizados na memória dos habitantes da pretensa ‘Paris Tropical’”.

Efervescência cultural

O período conhecido como Belle Époque diz respeito à fase compreendida entre os anos de 1871 – que marcou o fim da última guerra do século XIX na Europa, a Guerra Franco-Prussiana – e 1914, quando teve início a Primeira Guerra Mundial. Esse, portanto, foi um momento de longa paz na Europa, que coincidiu com o avanço do capitalismo internacional e, consequentemente, com o fortalecimento de um modelo de burguesia e o avanço dos grandes centros, como Londres, considerada a capital econômica do mundo, e Paris, tida como a capital cultural do mundo. É exatamente a partir desses locais que novas formas de produzir arte brotam.

No campo da arquitetura, por exemplo, os franceses criam o chamado Art Noveau (Nova Arte), que, na Inglaterra, ganha o nome de Modern Style (Estilo Moderno). Esse movimento, caracterizado, principalmente, pela preferência dada às linhas curvas, amplificou-se muito, saindo da arquitetura propriamente dita e ganhando ressonância na produção de talheres, pratos, azulejos, ferro, entre outros elementos. No terreno da pintura, por exemplo, é preciso destacar o caráter contestador do Art Noveau, que, embora tenha surgido em um período de riqueza na Europa, não deixou de notar e expor as mazelas e as figuras pitorescas que circulavam entre uma boa parcela da população.

Nesse sentido, artistas como Édouard Manet e Vincent Van Gogh tiveram papel preponderante. “Não é à toa que Manet chocou muito a sociedade da época ao pintar uma tela batizada de ‘Olympia’ (1863), a qual exibia uma mulher, uma prostituta, que parecia fitar o espectador nos olhos, muito diferente das mulheres retratadas até então, sempre muito distantes da realidade, com ares de Vênus”, explica Aldrin Figueiredo.

Segundo ele, todo esse universo teve grande repercussão no Brasil e, em especial, em Belém do Pará. “Se os brasileiros gostaram muito, os paraenses gostaram mais ainda. Então, tivemos essa influência, tanto pelo lado da arquitetura, com a chamada arquitetura de ferro, que pode ser vista, por exemplo, na construção do Ver-o-Peso e nos chalés de ferro de Belém, quanto pelo gosto dedicado aos produtos de casa, como jogos de talheres, jogos de pratos e relógios, que são puro Art Noveau”, detalha.

Economia em alta

Vale lembrar, que, nessa época, Belém vivia uma situação economicamente privilegiada. Detinha o quarto porto mais importante da América do Sul (ficando atrás apenas dos portos das cidades de Santos, em São Paulo, do Rio de Janeiro, no Estado de mesmo nome, e de Buenos Aires, na Argentina), chegando, inclusive, em muitos momentos, a disputar diretamente com o porto de Santos. Isso ocorreu porque, naquele período, os dois principais itens da pauta de exportações do Brasil eram o café e a borracha, esta última o mais importante produto da economia amazônica, conforme observa Maria de Nazaré Sarges, em “Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912)”.

Na obra, a especialista mostra ter sido exatamente nesse momento que Belém experimentou “todo um processo de modernização da cidade”, muito associado “aos valores estéticos de uma classe social em ascensão (seringalistas, comerciantes, fazendeiros) e às necessidades de se dar a determinados segmentos da população da cidade segurança e acomodação, além da colocação em prática da ideia positivista de progresso enfatizada pelo novo regime republicano”.

Dessa época de prosperidade observam-se prédios históricos que hoje são símbolo da Belle Époque. Entre essas edificações, estão o Theatro da Paz, o mercado de ferro do Ver-o-Peso, o mercado de São Brás e a loja Paris N’América – não à toa, o apelido que Belém ganhou na fase áurea da exploração da borracha. Fundada em 1870, a loja foi a primeira empresa a se registrar na Junta Comercial do Pará. O projeto arquitetônico tem traços claros das Galeries Lafayette, em Paris. A escada principal, em estilo art-nouveau, com traços sinuosos e motivos florais, conduz ao mezanino, sustentado por estrutura de ferro inglês. O belo prédio hoje convive com a paisagem do comércio desordenado da cidade.

Antônio Lemos em Belém

• Política saneadora preventiva e uma estratégia sanitária, que envolveram, por exemplo, a desodorização dos espaços
• Construção de prédios e pavimentação de ruas
• Construção de redes de esgotos e de água, coleta de lixo, drenagem de pântanos e criação de um Departamento Sanitário Municipal
• Ordenamento do espaço urbano com o disciplinamento dos hábitos da população e o emprego de mecanismos de controle, como a fiscalização, a polícia municipal e as leis e posturas municipais
• Arborização da cidade, instalação de bosques e construção de boulevards e quiosques
• Embelezamento de praças e construção de monumentos
• Calçamento de ruas e instalação de sistema de iluminação elétrica e bondes
• Concentração da venda de alimentos em mercados
• Recolhimento de mendigos a asilos


Leituras recomendadas

“Memórias do velho intendente”, de Maria de Nazaré Sarges, publicado em 2002, pela editora Paka-Tatu.
“Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912)”, da mesma autora e editora, com a terceira edição publicada no ano passado.

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