La mirada de Frida

Exposição inédita de fotografias de Frida Kahlo chega ao país obedecendo ao testamento de Diego Rivera.

16/06/2014 11:01 / Por: Lorena Filgueiras / Museu Frida Kahlo / Acervo da artista
La mirada de Frida

 
Um mês antes de sua morte, já muito debilitado, Diego Rivera chamou um tabelião para deixar registradas suas últimas vontades. Era uma carta extensa e boa parte dela foi tomada por instruções expressas de que seu acervo pessoal deveria ficar sob os cuidados de Dolores Olmedo [colecionadora de arte e uma das musas de Rivera décadas antes, além de executora do testamento do artista], que não deveria abrí-lo por até quinze anos após a morte do pintor. O banheiro da Casa Azul [onde o casal viveu grande parte de sua vida, até seus últimos dias e que abriga o Museu Frida Kahlo-México] ficou selado por mais de cinquenta anos. Olmedo manteve a “proibição” até morrer, em 2002. Conta-se que Olmedo tinha ciúmes de Frida, que nutria uma antipatia por ela e que rechaçava seu talento como artista. Conta-se que Dolores e Diego tiveram um affair [fato, aliás, que não surpreenderia, em se tratando de Diego Rivera, que costumava alardear que era “biologicamente incapaz de ser fiel”]. Conta-se, porque pouco se sabe dos reais motivos que levaram Dolores Olmedo a manter o cômodo lacrado por mais quase meio século. 

Em 2004, enfim, o banheiro foi aberto e o que “jazia” lá dentro foi comparado a um tesouro inestimável. Segundo a diretora do Museu Frida Kahlo, Hilda Trujillo Solo, em conversa com a Revista Leal Moreira, descortinava-se ali um período importantíssimo da cultura mexicana. “Foram encontrados mais de 22 documentos, 6.500 fotografias, desenhos, objetos pessoais e muito sentimento”, conta. 

Mas apenas três anos depois, em 2007, o acervo foi visto pela primeira vez por um público ansioso e apaixonado. Pergunto à Hilda como a revelação do acervo alterou a história que já se conhecia de Frida e Diego, ao que ela revela que o legado aprofunda muito o entendimento dos amores, do engajamento político e desencantos do casal. “Muito mais do que mudar a história, a abertura do acervo a enriqueceu; aprofundou a vida pessoal, os sentimentos. Tudo tem contribuído para aumentar o conhecimento do lado humano, que sempre há por trás de um grande criador”. 



“Encontramos uma carta de Albert Einstein agradecendo Diego Rivera por tê-lo pintado em um mural; cartas de artistas como Remedios Varo [pintora surrealista. 1908-1963], Wolfang Paalen [pintor surrealista. 1905-1954], Alice Rahon [poetisa e artista plástica. 1904-1978], dentre muitos outros que pediam que Frida os ajudasse a deixar a França depois da queda da República Espanhola e a chegar ao México. Encontramos ainda cartas de Trotsky, [André] Breton e Isamo Noguchi. O arquivo revela um tempo fantástico”, diz Hilda.
 
Voltando ao começo
“Frida nasceu cercada pelo mundo da fotografia [o pai e o avô eram fotógrafos]. Não é possível explicar a sua vida e obra, sem esta influência. Costumava-se dizer que Frida fez autorretratos porque não podia mover-se ou sair de sua cama, por conta da coluna quebrada... e encontramos no arquivo mais de trinta autorretratos de seu pai, em um deles posando nu. Por isso, o autorretrato [tão recorrente na obra de Frida] é uma influência do pai”, diz a diretora do Museu Frida Kahlo. 
 
São registros fotográficos da artista desde a infância, tiradas por dois fotógrafos profissionais de sua família [seu pai, Guillermo e seu avô materno]. Há também momentos eternizados pela alemã Gisèle Freund e pelo húngaro Nickolas Muray, dois fotógrafos que conviveram com Frida por anos, além de fotografias tiradas pela própria Frida e por outras pessoas, imagens que a pintora gostava de guardar, olhar e se inspirar.

Chegar ao resultado “final” [as 241 imagens que compõem a exposição, em um universo de 6.500 imagens] foi desafiador – tudo que pudesse jogar mais luz sobre o conturbado relacionamento de Frida e Diego naturalmente despertaria interesse do grande público.  “Foi uma seleção muito difícil... trabalhamos nessa missão por dois anos, mas escolhemos imagens que poderiam ser parte de um diário de Frida – com seu amor e suas inquietudes”. 

Sobre a itinerância
“A obra original não podia sair de casa de Frida, de acordo com a vontade, em testamento, de Diego Rivera. Para tornar essa exposição uma realidade, tivemos de fazer uma edição fac-símile, com Gabriel Figueroa, filho do grande cineasta. Portanto, é uma edição única [a exibição], que já foi vista em outros lugares e agora no Brasil. Essa é a única maneira que podemos mostrar essas imagens.  A seleção foi feita tendo como objetivo fazer um álbum de fotos para mostrar as diferentes influências e facetas de Frida Kahlo”, revela Hilda. 

No Brasil, a exposição ficará aberta ao público até o dia 02 de novembro, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. A escolha não foi por acaso [e pouco tem a ver com o fato de o próprio Niemeyer ser comunista, tal como Rivera] e sim resultado de anos de negociação. “O Brasil é um país fascinante; uma potência cultural. O privilégio de expor tais imagens em um prédio tão emblemático, idealizado pelo grande arquiteto Oscar Niemeyer, é um verdadeiro privilégio. Sempre levamos em consideração o compromisso de pensar nos países da América Latina, como forma de fortalecer nosso intercâmbio cultural”.

“Essa é uma exposição importantíssima, pois mostra, por meio das fotografias, como foi a vida de Frida Kahlo. Vemos através do seu corpo seu sofrimento e sua arte, suas alegrias e suas dores”, ressalta Estela Sandrini, diretora cultural do MON.

Das dores à redenção
Frida Kahlo nasceu Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón, em 6 de julho de 1907, na casa de conhecida como La Casa Azul [A Casa Azul – hoje o Museu Frida Kahlo], onde seus pais moravam, em Coyoacán. O pai, Guillermo Kahlo, nasceu na Alemanha e era fotógrafo. A mãe de Frida, Matilde Gonzalez y Calderón, era de origem indígena e espanhola. Tiveram quatro filhas e “Friducha” [como era carinhosamente tratada pelo pai] era a terceira delas. Mesmo estando rodeada de mulheres a maior parte do tempo, era com o pai que Frida se identificava.

Aos seis anos, contraiu poliomielite, o primeiro de uma série de males que padeceriam seu corpo. A doença deixou uma perna mais curta que a outra – o que a estimulou a usar longas saias [aliás, marcas registradas do vestuário e personalidade da artista].
 
Em 1925, aos 18 anos, sofre o acidente que mudaria sua vida. O bonde, no qual viajava de volta para casa, chocou-se com um trem. O pára-choque de um dos veículos perfurou-lhe as costas, atravessou sua pélvis e saiu pela vagina, causando uma grave hemorragia – que deixou Frida por muitos meses internada em um hospital, entre a vida e a morte. Incontáveis foram as operações, os coletes de gesso, as vestes em couro [para firmar a musculatura]. E foi nesse período, de recuperação, que começou a pintar – estimulada pelo pai. 
 
Solidão a dois
“Diego, houve dois grandes acidentes na minha vida: o bonde e você. Você sem dúvida foi o pior deles” – Frida Kahlo, em diário.
 
Casou-se aos 22 anos com Diego Rivera, em 1929. Desde o começo [apesar de todas as advertências da mãe, que o considerava um horror], Frida e Diego tiveram um casamento tumultuado. Ambos tinham personalidades fortes e compensavam suas infelicidades com inúmeros casos extraconjugais. O casamento acabou [pela primeira vez] quando Frida descobriu que Rivera mantinha um relacionamento de anos com sua irmã mais nova, Cristina. Mas em 1940, casou-se novamente com Diego. Promessa de paz? Não. De brigas ainda mais violentas. Decidiram que morariam em casas separadas, uma ao lado da outra, conectadas por uma ponte. Frida engravidou algumas vezes, mas, em função do útero comprometido [ainda o acidente do bonde], as gestações nunca chegaram ao final. 
Frida morreu em 13 de julho de 1954.
 
“13 julho de 1954 foi o dia mais trágico da minha vida. Eu tinha perdido minha amada Frida para sempre. Muito tarde, agora, eu percebi que a parte mais maravilhosa da minha vida tinha sido o meu amor por Frida.”
- Diego Rivera -

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Para melhor compreender a exposição, a mostra fotográfica foi divida em seis seções:
 
- A primeira retrata os pais da artista mexicana. Foram as numerosas imagens de seu pai, que fotografava a si mesmo em diferentes ocasiões, que deixaram uma marca permanente na pintora: o autorretrato.
 
- A segunda destaca a Casa Azul, as primeiras poses de Frida para seu pai e as diversas reuniões que lá aconteceram. A Casa Azul é a residência que foi dos pais da pintora, no bairro de Cocoyacán, na Cidade do México e que atualmente abriga o Museu Frida Kahlo, de onde vieram as obras dessa exposição.
 
- A terceira revela o lado íntimo dela. Há imagens feitas e estilizadas por ela, recortes fotográficos mutilados, dos quais Frida elimina ou elege alguns dos protagonistas.
 
- Na quarta concentram-se os amores. São fotografias de seus amigos mais próximos, familiares, alguns dos seus amantes e, principalmente, Diego Rivera.
 
- A quinta traz um numeroso arquivo reunido por Frida, tanto pela qualidade visual, no caso das anônimas, como pelo seu valor, no caso das assinadas por grandes artistas. Nessa seção, há desde cartões de visita do século 19 até retratos realizados por autores de destaque da história da fotografia e amigos pessoais.
 
- A sexta e última seção é dedicada às imagens relacionadas com as questões políticas.
 
“Esta é uma exposição importantíssima, pois mostra, por meio das fotografias, como foi a vida de Frida Kahlo. Vemos através do seu corpo, seu sofrimento e sua arte, suas alegrias e suas dores”, ressalta Estela Sandrini, diretora cultural do Museu Oscar Niemeyer em Curitiba, onde a exposição ficará permanecerá até o dia 02 de novembro.
 
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Para ver
Filme
Frida – 2002
Com Salma Hayek, no papel da pintora mexicana Frida Kahlo. 2h.
 
Documentário 
Frida Kahlo – La cinta que envuelve la bomba
 
Para ler
“Frida – a biografia” -  Hayden Herrera
 
 “O Segredo de Frida Kahlo” - Romance de Francisco Haghenbeck
 
“Frida Kahlo – Suas fotos”  - Cosac Naify
 
“Diego e Frida” - Jean-Marie Le Clézio
 
Das dores à redenção
Várias podem ser as motivações e inspirações da arte: da felicidade à dor extremada. A depressão, afirmam os biógrafos, fez com que Van Gogh extirpasse uma de suas orelhas. Oscar Wilde, melancólico, produziu alguns de seus mais belos versos no auge de suas crises.  Platão acreditava [e creditava] em uma espécie de “loucura divina”, que servia de pedra fundamental à toda criação e ao processo de criação. 

Mas Frida Kahlo tornou-se sua melhor obra de arte: transgrediu as criações e pensamentos artísticos vigentes à época. Transcendeu sua própria dor e encontrou em si – de sua primeira experiência dolorosa [a poliomielite], passando pelo acidente que a lacerou até o casamento com Rivera [“o pior de todos os acidentes”, segundo a própria] – e em seu sofrimento sua maior beleza. Uma conclusão cruel e desumana. E são essas as características que Frida reuniu em cada um de seus quadros.
 
“Pinto a mim mesmo porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor”, confidenciou ao seu diário. Não podia estar mais certa.
 
Das dores físicas – lancinantes – ao sofrimento emocional, Frida sofreu como poucos. E pintava toda a intensidade de sua dor, ao mesmo tempo em que é pontualmente visível perceber o lampejo de esperança de um dia ver-se livre de tanta miséria. 
 
Não bastasse toda a fragilidade de seu corpo, um ano antes de morrer, Frida teve de amputar o pé direito. Mais uma vez transformou a dor em beleza. Mais uma vez segredou ao seu diário. “Pés para que os quero, se tenho asas para voar?”
 
O diário, único que serviu-lhe com a fidelidade e lealdade almejadas, ainda guardou uma última declaração, sobre a morte [e a alteração da percepção de sua própria partida). “Espero que minha partida seja feliz e espero nunca mais regressar”
 
 
Serviço
Frida Kahlo – suas fotografias
Onde: Museu Oscar Niemeyer (MON)
Quando:  de 17/07/2014 a 02/11/2014
Terça a domingo: 10h às 17h30 (com permanência até as 18h) 
Segunda: não abre 
Primeira quinta-feira do mês: horário estendido até as 20h
Preço:  R$ 6 (½ entrada: R$ 3) 
No primeiro domingo de cada mês a entrada é gratuita 
Primeira quinta-feira do mês entrada gratuita entre 18h e 20h
 
Agradecimentos
Terra Esplêndida (Portugal)
Museu Frida Kahlo (México)
Museu Oscar Niemeyer (Brasil)

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