Os brinquedos da floresta

Os artigos de miriti entrelaçam universo lúdico, imaginário amazônico, identidade cultural e manifestação de fé, além de fomentar uma economia que sustenta centenas de famílias.

25/09/2012 12:27
Os brinquedos da floresta

Conta-se que, um dia, um pescador perdeu a canoa na beira do rio e, precisando a qualquer custo reencontrar o meio de trabalho e sustento, fez uma promessa a Nossa Senhora de Nazaré. A graça foi alcançada e o pescador construiu um lindo e colorido barco de miriti. Para agradecer o milagre, carregou a miniatura na cabeça por todo percurso do Círio de Nazaré, no segundo domingo de outubro em Belém.

O pagador de promessas de Abaetetuba, município conhecido como “Capital mundial do brinquedo de miriti”, localizado a 70 quilômetros de Belém, pode ter sido o início da tradição. Hoje, cobras, tatus, pássaros e barcos de miriti estão entre os principais símbolos da maior procissão religiosa do Brasil, que entrelaça lúdico, identidade cultural, imaginário amazônico e manifestação de fé.

A Associação dos Artesãos de Brinquedos de Miriti de Abaetetuba (Asamab) estima que, às vésperas do Círio, cerca de 80 mil brinquedos de miriti cheguem às feiras e praças de Belém para serem vendidos em girândolas durante as romarias dos quinze dias da festividade.

Mas até colorir a procissão, o miriti movimenta uma ampla cadeia de produção, envolvendo desde as famílias ribeirinhas, que coletam a matéria-prima; as famílias de artesãos de Abaetetuba, que beneficiam e vendem os produtos; até empresários que comercializam o artesanato paraense para outros estados brasileiros.

De Abaetetuba para o mundo

No início, a atividade era ligada apenas ao Círio de Nazaré. Os artesãos produziam brinquedos somente para atender à demanda do mês de outubro em Belém. Mas, na última década, com apoio de órgãos como o SEBRAE e a Fundação Curro Velho, do Governo do Estado, houve a profissionalização da cadeia produtiva e o artesanato de miriti se tornou o meio de vida de muitas famílias durante o ano inteiro.

É o que afirma Desidério dos Santos Neto, de 50 anos, que até 2011 foi presidente da Asamab. Em um grupo de 146 associados, os artesãos organizam o escoamento da produção, o manejo da palmeira e o fortalecimento da atividade com a realização de eventos, como o MiritiFest, em maio, e a participação em  feiras. Nesses últimos anos, os brinquedos de miriti viajaram todos os estados brasileiros e outros países como Japão, França, Alemanha e Portugal. “São cerca de doze feiras por ano, quase uma por mês”, afirma Desidério.

Arte em família

Desde que nasceu, Desiderio vive da lida do miriti. Para muitas crianças de Abaetetuba, na infância é só mais uma brincadeira. Quando adulto, fonte de renda para a família. “Bastava cair um chuvinha, pra gente talhar um barco e soltar nas poças de água”, relembra. Ele aprendeu a técnica com os pais e avós, como muitos dos artesãos da cidade, que reúnem esposas, primos, cunhados e irmãos nos ateliês.

Enquanto o artesão Manoel Benedito - o Seu Sita - de 49 anos, lixa os barcos de miriti, já contabilizados para o Círio deste ano, o pequeno Lucas, seu sobrinho de cinco anos, constrói o próprio brinquedo sentado no chão. “Eu aprendi assim, vendo a família fazer e brincando”, afirma seu Sita, apontando para o menino. “Quando eu tinha quatro anos, o meu pai construiu uma canoa de miriti que cabia eu e meu irmão dentro”, rememora. Ela planeja levar pelo menos mil peças para Belém no próximo mês de outubro e, para isso, conta com a ajuda de dois sobrinhos e da cunhada. 

Segundo o escritor João de Jesus Paes Loureiro, o artesanato do miriti cria um destino comum à família de Abaetetuba: “no sentido de fortalecer o liame familiar, garantir atividade lúdica aos filhos fora do horário das aulas e dar exemplo de prática de trabalho”, explica Paes Loureiro, que nasceu em Abaeté, como a cidade é carinhosamente chamada. “O Círio também é uma romaria da família, o que favorece o interesse pelo brinquedo entre as crianças e dos pais para presenteá-las”, completa.

Paes Loureiro lançou este ano o livro “Da Cor do Norte: brinquedos de miriti” [Ed. Lumiar]. A publicação retrata, ao mesmo tempo, a experiência pessoal do autor, que teve a infância marcada pelo colorido do miriti, e a cadeia de produção do artesanato, apresentando a atividade como uma manifestação artística coletiva.

Artigo de “e-commerce”

Com as oficinas de capacitação e design, os artigos também foram diversificados. Além dos tradicionais modelos de brinquedos, criaram-se também quadros, móbiles, flores, presépios, carros, embalagens e peças de decoração. 

“Sou apaixonada por miriti. Para decoração, então, é algo muito versátil”, afirma a empresária Joanna Martins, que abriu uma loja virtual de artigos tipicamente paraenses, a Amazônia Empório, para atender o mercado de outros estados.   

Depois do tucupi, tradicional caldo extraído da mandioca, e da polpa de açaí, que já ganhou o Brasil, os produtos mais vendidos pela internet são a perfumaria artesanal e os brinquedos de miriti. Joanna oferece trinta itens do artesanato de Abaetetuba e as embalagens são as mais procuradas. “Eu vejo o encantamento que as pessoas têm com esses produtos. São muito originais e tem o apelo da sustentabilidade”, conta a empresária. A maioria dos clientes da loja virtual está em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.

Economia e sustentabilidade

O miritizeiro é uma alta palmeira típica de áreas de várzeas da Amazônia, muito recorrente nas 62 ilhas do entorno do município de Abaetetuba. Dele, tudo é aproveitado. O fruto, também conhecido como buriti, é ingrediente de várias receitas da região, entre sucos e licores. A palma vira boa palha usada para cobrir telhados. A madeira serve de sustentação para casas de pescadores. E a fibra, matéria-prima dos brinquedos, é usada também para tecer cestos, paneiros e matapis.

Leve como um “isopor natural”, a fibra do miriti recebe talho com facilidade, o que permite infinitas possibilidades de fabricação de brinquedos e outros objetos.  Mas, para isso, passa por um longo processo. Na coleta, o ribeirinho corta uma “braça” do miriti - haste da palma - que pode medir até quatro metros. Como o material é muito úmido, precisa secar entre 15 e 30 dias. Chega já preparado às mãos do artesão, para ser cortado, lixado e pintado. Com a finalidade de diminuir as sobras, a Asamab já dispõe do maquinário para começar a produzir papel dos restos de fibra que se acumulam nos ateliês. Será mais um incremento para a economia da cidade, onde vários homens e mulheres preferem largar o comércio, principal atividade do núcleo urbano, para viver somente de artesanato; como o caso do artesão José Maria Araújo, de 58 anos. Os brinquedos de miriti e outros artigos podem custar entre R$ 1,50 a R$ 400, dependendo do tamanho e complexidade da peça, que muitas vezes é encomendada. “Quase todo dia sou procurado para vender algum brinquedo de miriti ou por alguém que quer encomendar”, afirma Araújo.

Para cuidar da tradição

Uma das preocupações dos artesãos de Abaetetuba é que a tradição do artesanato de miriti permaneça no cotidiano das próximas gerações.  Mesmo que muitos aprendam a técnica dentro de casa, no seio familiar, são poucos os que escolhem a atividade como profissão. “Muitos jovens preferem fazer faculdade e ter outro tipo de trabalho” afirma Valdeli Alves, 42 anos, um dos fundadores da Associação Arte Miriti de Abaetetuba, a MIRITONG.

A Associação foi criada em 2005 para promover oficinas e cursos que incentivem jovens e adolescentes a se tornarem artesãos profissionais de miriti.  Para que seja sempre uma alternativa de trabalho e renda, as atividades percorrem toda a região das ilhas e centenas de pessoas já participaram das capacitações.

A história de Valdeli é um exemplo de redescoberta do artesanato. Ele já brincava com o miriti quando criança, mas antes de se tornar um artesão, foi padeiro, ajudante de pedreiro e pintor. Desempregado, ele encontrou no miriti a solução.  “Fiz algumas peças com a minha esposa e vendemos tudo no Círio de Nossa Senhora da Conceição, aqui em Abaetetuba”, conta. Produziu mais para vender no Círio de Nazaré, em Belém, e deu certo. Conheceu outros artesãos, participou de várias capacitações e decidiu seguir o caminho do artesanato para sustentar a família. “Pensei comigo: ‘nunca mais vou fazer outra coisa”, afirma Valdeli. Hoje, ele também ministra oficinas para adolescentes. É uma das formas de garantir que o colorido das girândolas de miriti persevere ainda por muitos e muitos círios de Nazaré.

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