Cartas para quem

Um dos mais antigos meios de comunicação caiu no esquecimento. Mas há quem ainda mande cartas.

14/03/2014 17:29 / Por: Bruna Valle/ Foto: Cartas Tapi/ Gerard ter Borch/ Renée Moura
 Cartas para quem

Sem uma origem definida, as cartas são tão antigas quanto a vontade de falar com quem está longe. Antigos reis - até mesmo 4 mil anos antes da era cristã – já trocavam escritos. Eles eram feitos de forma diferente do que se apresenta hoje, mas com o mesmo intuito: a comunicação.

No Brasil, ela chegou (ou se tem registro dela) com a carta de Pero Vaz de Caminha, que anunciava o descobrimento das novas terras. Ou seja, em 1500 foi a primeira ligação postal entre o Brasil e a metrópole em Portugal. A missiva, inclusive, é considerada a “certidão de batismo” do Brasil na história postal dos Correios.

No começo da história postal da qual se tem registro, indivíduos eram eleitos pelo rei para o ofício de Correio-Mor do Reino - escolha que, após algum tempo, tornou-se hereditária e só depois estatal.  Mas antes de ganhar seu caminho pelas águas - e dar origem ao cargo de Correio-Mor das Cartas do Mar, voltado para o transporte das correspondências via marítima -, ou por transportes mais avançados, o pioneiro indicado pelo rei a começar a incrível jornada dos serviços postais foi Luiz Homem.

Hoje, quinhentos e quatorze anos depois, a atividade que surgiu para facilitar a comunicação à distância não só mudou como também deixou de ser popular. Com a entrada do telefone e o avanço das tecnologias disparando mensagens das mais diversas formas, cartas e cartões postais foram deixados de lado, meio esquecidos. Mas ainda hoje tem gente que não abre mão de escrever, nem que seja para desconhecidos. O site da Revista Leal Moreira bateu um papo com correspondentes à moda antiga. São pessoas que acreditam nas cartas e as veem como a melhor forma de demonstrar carinho e atenção por meio de palavras.

A publicitária Danyelle Aires é uma dessas pessoas que têm verdadeira paixão pelo ato de escrever e receber cartas. Ela garante que, mais do que um escrito com informações, suas cartas transportam um pouco do que ela é e sente. “Hoje em dia tudo está tão rápido, fácil e previsível que receber uma carta é maravilhoso! Eu faço um processo de envelhecimento dos meus envelopes no café, pois quero quem a receba sinta o cheiro de café de um jeito suave... Quem me conhece sabe que eu amo café. Mando também alguns jasmins, minhas flores preferidas... Ou seja, nunca mando ‘só’ o texto, mando lembranças”.

Para Danyelle, as cartas são um ato de carinho. Ela descobriu em um projeto na internet outras pessoas que pensam o mesmo, e se correspondem mesmo sem se conhecer pessoalmente. “O projeto ‘TrocaDeCartas’ surgiu em um dos perfis do Instagram que sigo, o @mundoliterario. Nesse projeto, conheci umas vinte pessoas, e fiquei mais próxima de três. Sempre que mando as cartas para elas, eu digo o que gosto de fazer, falo um pouco de mim... Estar nesse projeto me faz pensar como ainda existem pessoas que confiam em desconhecidos. Você dá o seu endereço, ninguém usa caixa postal e nós nos deixamos livres para falarmos o que quisermos - trocar ideias, sonhos... É possível se sentir muito próximo de algumas pessoas já na segunda troca de cartas. É estranho isso, porque existem pessoas que conheço pessoalmente e com quem não me sinto tão à vontade como com meus correspondentes”.


E não são só as cartas que têm admiradores secretos: os cartões postais – que vieram depois da carta, como uma versão reduzida delas – também têm lugar garantido no coração e nas caixas de correios de pessoas como Renée Moura. Ela é brasileira, mas atualmente envia seus queridos postais da Noruega.

Renée acredita que, mais do que um pequeno retângulo de papelão fino viajando para seu destinatário sem envelope, um cartão postal é a materialização de uma lembrança concreta, um verdadeiro presente cheio de referências pessoais para pessoas queridas. “É uma forma de comunicação, uma manifestação das ideias de alguém. Não é à toa que a pessoa escolhe justamente aquela imagem específica da cidade, paisagem, animal de estimação... Existe um processo de convergência de ideias entre quem envia e quem recebe - talvez da mesma forma que acontece quando se escolhe um presente pra alguém”.

Assim como as cartas, os postais também têm um “fã clube” - uma espécie de projeto que une pessoas do mundo a fim de se corresponder de forma aleatória. Nele, cada usuário tem um perfil e geralmente escreve um pouco sobre si - e, em particular, sobre que tipos de cartão gosta de receber, já que a atividade tem que ser prazerosa acima de tudo, independente do anonimato. “Participo de um site chamado ‘PostCrossing’. Lá, a troca de postais é feita de maneira aleatória. Quando você quer enviar um cartão, o site escolhe pra você um endereço entre os quase 500 mil cadastrados em mais de 200 países. Juntamente com o endereço, você recebe um código único que serve pra identificar o cartão. Dificilmente a gente recebe um cartão da pessoa pra qual enviamos algum, mas uma mensagem de agradecimento in-box através do próprio site é um hábito bastante comum”.

Se o tempo de espera incomoda essas duas paraenses que têm suas caixas de correios cheias de surpresas e alegria? Elas dizem que não. Renée, inclusive, acredita que se fala muito em não perder tempo, mas muitas vezes nem sequer se sabe o que fazer com ele. “Quase nunca paramos para pensar na finalidade para qual estamos ‘salvando’ esse tempo todo. De qualquer forma, acho que nesse contexto o tempo não é um ponto tão central ou um ‘obstáculo’. Diria até que a demora é um requisito que agrega certo valor ao postal. Por dois motivos meio que opostos: por gerar expectativas e por nos surpreender quando não estamos esperando por um postal - no caso, quando há falta de expectativas.  A questão é que o envio de postais serve uma função relativamente distante da simples intenção de comunicar algo objetivo, urgente ou descompromissado”.

Essa valiosa experiência de receber cartas pessoais na caixinha do correio - que, segundo Danyelle, hoje em dia anda quase sempre vazia de surpresas boas e cheias de contas e anúncios –  está se perdendo, e em teoria a nova geração não tem mais tanto contato com isso. Bom, não tinha. A designer gráfica paulista Alê Passarim se inspirou no trabalho da artista canadense Janice MacLeod, que vende cartas pintadas, e criou sua própria personagem. Nela, viu a oportunidade de incentivar a criatividade e imaginação das crianças “casar” com sua vontade de resgatar esse costume antigo e saudoso.

As “Cartas de Tapi” têm conteúdo pré-definido que pode ser escolhido pelos pais. A personagem criada por Alê, Tapi Lupá, é uma criança alegre e curiosa que “envia cartas até para quem ainda não conhece, tamanha é sua vontade de contar as peripécias que vive em seu dia a dia. Suas cartas são uma espécie de diário, enviado por correio”. Ela conta que hoje em dia, por ter filhos pequenos, está sempre respondendo a perguntas sobre tudo. "Juntando as cartas com o dia a dia cheio de descobertas de uma criança, criei Tapi Lupá".

Embora seja uma atividade remunerada, Alê garante que sente muito prazer em poder reviver a adolescência, pois lembra das divertidas trocas de correspondência que fazia. "Eram cartas cheias de pedacinhos de coisas, folhas, desenhos, brincadeiras, envelopes feitos de revista... Era uma delícia fazê-las, enviá-las e receber outras em troca”.

Sabe como ela sabe tudo pelo que as crianças vão se interessar? Ela se inspira em seus filhos - e acredita que as cartas são uma boa oportunidade para estimular os pequenos. “Acho importante mostrar o mundo não-digital. Afinal, nem tudo funciona apertando teclas e botões. Apresentar cartas de papel às crianças da 'geração tablet' pode ser muito interessante em vários aspectos - como estimular a leitura, a criatividade, despertar o interesse na filatelia [estudo ou coleção de selos]”. A designer garante que não é só a garotada que pode gostar de Tapi: adultos também podem se divertir com as experiências dela. “Ler e/ou escrever uma carta pessoal pode ter vários desdobramentos bacanas para uma criança ou mesmo para um adulto. Como digo em meu site, a faixa etária recomendada é de 4 a 8 anos, mas crianças de outras idades também podem se divertir ao ler as cartas. Adultos jovens de espírito -- independente da idade -- também podem ser ávidos leitores das cartas de Tapi”.

É um paradoxo, mas as pessoas encontram correspondentes postais por meio virtuais. E esse pode ser o canal para que cada vez mais pessoas se encontrem e se comuniquem de outras formas - e resgatem velhos costumes que podem estreitar ainda mais as relações. Você também adora encontrar envelopes ou cartões postais esperando você chegar em casa e não sabia como colocar isso na sua vida? É só dar uma olhada nesses sites aqui:

Troca de Cartas

PostCrossing

Cartas de Tapi

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