Das HQ´s às telonas

Marcada por orçamentos faraônicos, bilheterias recorde e críticas nem sempre positivas, a relação entre quadrinhos e cinema alimenta a indústria do entretenimento

22/06/2012 11:22 / Por: Guto Lobato / Foto: Divulgação
Das HQ´s às telonas

À primeira vista, parecem diferentes – opostos até – em sua maneira de contar histórias. São regidos por leis distintas e ganham popularidade entre públicos de gerações e interesses igualmente variados. No entanto, por força do mercado, imposição de fãs ou ambos, os mundos dos quadrinhos e do cinema têm cada vez mais andado de mãos dadas. Para se ter uma ideia, à exceção de 2009, todas as maiores bilheterias da última década contaram com ao menos um filme cuja trama adaptava HQs. Sinal de que, juntas, essas linguagens compõem um filão lucrativo – que tende a ganhar cada vez mais adeptos e ser a principal força motriz das indústrias cinematográfica e editorial.

A despeito da qualidade dos resultados, não há como negar a força comercial das histórias de comic books e graphic novels que são levadas à grande tela. Tampouco dá para afirmar que esse processo é recente – o que é novidade na indústria do cinema. De fato, são os orçamentos faraônicos que ultrapassam os US$ 200 milhões, e não a prática de interligar o mundo dos super-heróis e as salas de exibição.

Surgidas à mesma época, ao final do século XIX, as histórias em quadrinhos e a linguagem do cinema serviram para sedimentar a indústria do entretenimento ao redor do mundo. De um lado, as tirinhas, desenvolvidas a partir da evolução do desenho jornalístico, do folhetim, da caricatura e do cartoon básico, com linguagem inovadora e um sem-fim de possibilidades narrativas; de outro, o cinema, que, caminhando junto à evolução tecnológica, levou à prática a produção de imagens em movimento.

Com forte apelo popular, ambas desenvolveram uma trajetória de sucesso que, cedo ou tarde, tinha de se encontrar; afinal, desde o ritmo de narração até os enquadramentos e técnicas de texto, há muito em comum entre suas linguagens – difícil é dizer quem copiou quem. A primeira metade do século XX, de tecnologia ainda limitada no audiovisual, foi marcada pela aparição de alguns heróis nas telonas, como Flash Gordon, Batman e Capitão Marvel. Gigantes do segmento editorial, como a Marvel e a DC Comics, logo perceberam que era possível tornar as HQs sucessos na telona – e os estúdios começaram a apostar, meio que timidamente, na ideia.

Em 1978, um marco: das mãos de Richard Donner, foi lançado “Superman”, estrelado por Christopher Reeve, que inaugurou a era de superproduções com um cachê (então astronômico) de US$ 3,7 milhões para Marlon Brando e uma qualidade narrativa – finalmente – reconhecida por alguns fãs. O final da década de 1980 também foi emblemático com “Batman” (1989), de Tim Burton – aclamada por crítica e público, a obra, dotada de uma estética dark, serviu para abrir os olhos (e os bolsos) de Hollywood, que, à época, ainda sofria os efeitos da crise econômica, para a lucratividade do segmento.
 
Tecnologia, negócios e os riscos à inovação

Aliadas a tecnologias de animação e efeitos especiais que permitem reproduções cada vez mais fiéis ao original, as HQs passaram a se tornar peça fundamental na indústria do cinema. Com um pé na nostalgia e outro na busca por espectadores, os estúdios têm revirado a poeira e conseguido alcançar um sucesso à base de heróis clássicos, sobretudo da Marvel (comprada pela Disney, em 2009, por singelos US$ 4 bilhões) e da DC Comics. Um diferencial apenas: ao invés de escravas dos estúdios, as detentoras das marcas passaram a ficar à frente do negócio e contar com grandes empresas somente na fase de distribuição.

A virada do século XXI foi de lançamentos rentáveis, como “X-Men: O Filme” (2000), orçado em US$ 75 milhões e capaz de lucrar US$ 296 milhões, e o primeiro da trilogia “Homem-Aranha” (2002), que custou US$ 140 milhões e rendeu nada menos que US$ 821 milhões. Nos anos seguintes,  heróis como Lanterna Verde, Batman, Homem de Ferro, Thor, Capitão América e Hulk foram, um a um, ganhando suas versões – além de obras HQ como Watchmen, V de Vingança, Estrada para Perdição, Sin City e Constantine. Além dos casos clássicos de quadrinhos indo para o cinema, há ainda exemplos inversos, como o da saga “Millenium”, de Stieg Larson – que nasceu na literatura, passou por duas adaptações para o cinema (a mais pop, “Os Homens Que Não Amavam As Mulheres”, realizada por David Fincher, estreou em 2011) e agora deve ganhar versão em quadrinhos ao final de 2012.

 “É uma fórmula direta para o sucesso. As HQs já têm sucesso e público-alvo há décadas. Ao recorrer a uma história que atrai espectadores sem grande esforço, a indústria do cinema não precisa construir uma marca ou franquia do zero”, diz o produtor pernambucano Frederico Lapenda, 43, que vive desde os anos 1980 nos Estados Unidos. “Além dos lucros altos para os estúdios e produtoras, as editoras também se beneficiam nessa relação. Muitos jovens vão com seus pais e tios ao cinema, conhecem o herói ou franquia e correm para as revistas atrás deles. Isso quando não vão assistir ao mesmo filme várias vezes, levando amigos e familiares.”

Com experiência em produtoras como a Paradigm Pictures, da qual hoje é presidente, Lapenda afirma, no entanto, que o casamento entre quadrinhos e cinema não é necessariamente positivo para ambos os lados. “As bilheterias são fortes, as detentoras dos direitos dos quadrinhos reavivam as memórias em torno de seus personagens e marcas, mas, nesse ciclo, uma coisa pode, ironicamente, sair prejudicada: o próprio cinema. Aos poucos, propostas de roteiros novos não são mais aceitas nos grandes estúdios, que se concentram muito mais no lucro. Muitas janelas se fecham com a concentração de recursos nessas superproduções, impedindo a inovação – que é a força que move o cinema”, argumenta.

Os investimentos – e os tropeços – do cinema-HQ

O trabalho de “enfiar goela abaixo” dos fãs uma versão audiovisual de seus principais heróis e histórias, porém, não é dos mais fáceis. Nem mesmo investimentos astronômicos, como os US$ 200 milhões de “Lanterna Verde” (2011), dirigido por Martin Campbell (e que, por pouco, não deu prejuízo, com arrecadação de US$ 219 milhões), são garantia de sucesso. Isso porque é preciso, a um só tempo, investir na qualidade do material, vencer a resistência dos fãs, conquistar críticos e atrair jovens nem sempre habituados aos heróis clássicos.

 “A questão é que houve um salto de qualidade técnica nas produções, mas não na adaptação. Muitas vezes, perde-se a essência da história original para dar mais peso aos efeitos visuais e especiais”, opina o administrador Marco Antônio Moreira, presidente da Associação de Críticos de Cinema do Pará (ACCPA). “Antigamente, os roteiros adaptados estavam mais ligados ao universo HQ, o que hoje nem sempre é possível. O investimento é muito alto e o faturamento se torna imperativo.”

A mesma opinião é defendida por Cristiano Seixas, 39, diretor da Casa dos Quadrinhos, escola técnica sediada em Belo Horizonte (MG) que se tornou referência no ensino de artes visuais. “Devido ao medo de um fracasso financeiro, muitos produtores preferem não se arriscar fora da estrutura de roteiro de um blockbuster tradicional. Ainda existe muito terreno criativo vindo dos quadrinhos a explorar”, diz. “Nos últimos anos, muitas adaptações foram feitas sem que houvesse entendimento dos produtores sobre o funcionamento e o universo dos personagens – o filme Mulher-Gato, estrelado por Halle Berry, é o exemplo mais gritante”, exemplifica.

Além da busca por um mínimo de fidelidade às histórias originais, para agradar fãs, a solução mais comum para driblar o fiasco comercial é investir pesado em propaganda – sobretudo em mercados emergentes e tradicionalmente lucrativos, como o brasileiro. Um exemplo recente: “Os Vingadores” (2012), dirigido por Joss Whedon. A estreia contemplou um investimento de mais de US$ 100 milhões em divulgação e na exibição simultânea em mais de mil salas no Brasil – maior lançamento da história da Disney e da Marvel no país. Globalmente, o filme arrecadou US$ 218 milhões somente em seus seis primeiros dias de exibição. Na estreia no Brasil, 1,5 milhão de pessoas foram às salas em um único final de semana.

Há quem enxergue nas bilheterias não tão chamativas desde o segundo semestre de 2011 – à exceção, claro, de “Os Vingadores” –, que coincidiram com a explosão da crise financeira internacional, um sinal de alerta: pecando pelo excesso, Hollywood estaria gastando demais com o cinema-HQ, e o público não estaria reagindo tão bem (veja quadro). Os últimos anos, porém, indicam que ainda há o que explorar nesse terreno. “Os cineastas sempre foram influenciados por todas as mídias, artes e movimentos. Os quadrinhos têm uma linguagem diferenciada, um visual e uma construção de personagens que podem contribuir com novas ideias e tendências, levando o cinema a outros níveis de produção e criação”, argumenta Marco Antônio Moreira.
 
Um velho dilema

Estúdios, produtores e – principalmente – fãs sabem, no entanto, que não é apenas de sucesso comercial que se mensura a qualidade de uma adaptação de quadrinhos ao cinema: “Sin City” (2005), dirigido por Robert Rodriguez e baseado na graphic novel de Frank Miller, por exemplo, lucrou em bilheteria o quádruplo de seus US$ 40 milhões de orçamento. O que não o salvou de, após a euforia inicial com suas qualidades estéticas e sua direção cuidadosa, receber diversas críticas de fãs e especialistas, que consideraram a versão audiovisual do universo noir de Miller um tanto exagerada e sanguinolenta.

A explicação para a implicância de muitos em relação às adaptações está nos limites de cada formato: alguns elementos dos roteiros das histórias em tiras não podem ser adaptados para um filme – e vice-versa. “Daí vem o raciocínio de que a obra original será sempre superior às suas transposições. Por isso, acredito na proposta da ‘transmídia’: cada suporte deve ter sua história específica para o personagem, ao invés de se trabalhar com o mesmo texto no cinema e nos quadrinhos”, opina Cristiano Seixas.

No final das contas, é o mesmo dilema enfrentado por outras formas de adaptação, como as literárias: quem vai ao cinema, está à procura de referências que liguem o original à, digamos, “cópia”. E nem sempre Hollywood consegue entrar nos cérebros dos fiéis leitores de HQs para entender suas expectativas. Tanto que, após décadas lucrando em cima de super-heróis e franquias para todas as gerações, ainda deixa lacunas importantes a preencher: “Quem é fã de quadrinho, espera por um filme com o Sandman até hoje”, exemplifica Marco Antônio Moreira. “A saga Incal, do Moebius e do Jodorowsky, daria uma excelente trilogia no cinema”, completa Cristiano Seixas. A visão de Frederico Lapenda, no entanto, é mais reticente: “Com US$ 200 milhões, os estúdios podiam dar chance a outros projetos e produzir uns 100 filmes de baixo orçamento”.

   


Franquias que deram lucro no cinema...

Superman (1978)
Direção: Richard Donner
Orçamento: US$55 milhões
Arrecadação: US$ 300 milhões

Batman (1989)
Direção: Tim Burton
Orçamento: US$ 35 milhões
Arrecadação: US$ 411,3 milhões

Blade (1998)
Direção: Stephen Norrington
Orçamento: US$ 45 milhões
Arrecadação: US$ 131 milhões

X-Men: o Filme (2000)
Direção: Bryan Singer
Orçamento: US$ 75 milhões
Arrecadação: US$ 296 milhões

Homem-Aranha (2002)
Direção: Sam Raimi
Orçamento: US$ 140 milhões
Arrecadação: US$ 821,7 milhões

Homem-Aranha 2 (2004)
Direção: Sam Raimi
Orçamento: US$ 200 milhões
Arrecadação: US$ 783,8 milhões

Sin City (2005)
Direção: Robert Rodriguez e Frank Miller
Orçamento: US$ 40 milhões
Arrecadação: US$ 159 milhões

Batman Begins (2005)
Direção: Christopher Nolan
Orçamento: US$ 150 milhões
Receita: US$ 372,7 milhões

V de Vingança (2006)
Direção: James McTeigue
Orçamento: US$ 54 milhões
Arrecadação: US$ 132 milhões

Homem-Aranha 3 (2007)
Direção: Sam Raimi
Orçamento: US$ 258 milhões
Arrecadação: US$ 890,8 milhões

O Incrível Hulk (2008)
Direção: Louis Leterrier
Orçamento: US$ 115 milhões
Arrecadação: US$ 235,4 milhões

Homem de Ferro (2008)
Direção: Jon Favreau
Orçamento: US$ 140 milhões
Arrecadação: US$ 585,1 milhões

   

...E outras que não se saíram tão bem

Mulher-Gato (2004)
Direção: Pitof
Orçamento: US$ 100 milhões
Arrecadação: US$ 82 milhões

Cowboys & Aliens (2011)
Direção: Jon Favreau
Orçamento: US$ 163 milhões
Arrecadação: US$ 178 milhões

Lanterna Verde (2011)
Direção: Martin Campbell
Orçamento: US$ 200 milhões
Arrecadação: US$ 219 milhões

Conan, o Bárbaro (2011)
Direção: Martin Campbell
Orçamento: US$ 90 milhões
Arrecadação: US$ 48,8 milhões

Novos filmes

Homem de Ferro 3
Previsão: maio de 2013

Thor 2
Previsão: novembro de 2013

Capitão América 2
Previsão: abril de 2014

O espetacular Homem-Aranha
Previsão: julho de 2012

Batman – O Cavaleiro das Trevas ressurge
Previsão: julho de 2012

Superman – Man of Steel
Previsão: 2013
 

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