O novo Ouro negro

Dos primeiros registros até hoje, o chocolate sempre foi sinônimo de valor e pureza.

11/04/2014 11:48 / Por: Bruna Valle/ Fotos: Dudu Maroja
O novo Ouro negro

Desde seu descobrimento, cujas circunstâncias exatas são desconhecidas, as sementes de cacau já exerceram diversos papéis – a maioria deles relacionados à nobreza.  O que se sabe é que antigas tribos Maias, Incas e Astecas já conheciam e faziam uso das sementes do cacau para o que logo depois foi considerado um líquido sagrado: o “xocoatl” ou “tchocolath”. Dizem as lendas que o imperador Montezuma considerava o chocolate mais valioso do que o próprio ouro e prata. Por esse motivo, ele tomava a bebida em cálices de ouro e depois os descartava – já que o mais valioso era o seu conteúdo.

As amêndoas de cacau foram parar nas mais suntuosas mesas de banquete, nas relações comerciais e ainda nos ritos religiosos. O desbravador Hernán Cortez foi o “passaporte” das valiosas sementes para a Espanha. Ele ofereceu a iguaria ao Rei, que ficou maravilhado com a bebida sagrada. Assim, o chocolate ia galgando seu caminho no mundo – cheio de honrarias e com lugar cativo na mesa das mais nobres figuras da Antiguidade.

No Brasil, esse “fruto dos deuses” chegou – segundo a ABICAB (Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Cacau, Amendoim, Balas e Derivados) – primeiro por aqui, pelo estado do Pará, em 1746, pelas mãos do colonizador francês Louis Frederic Warneaux. As sementes também caíram nas mãos de Antônio Dias Ribeiro, dando início ao plantio da amêndoa na Bahia, hoje o maior produtor de cacau do Brasil.

Mas essa história sobre as preciosas amêndoas que conquistaram o mundo não está encerrada nos livros. Elas continuam “seduzindo” muita gente por aí. A trajetória do chocolate ainda está sendo contada. Mais personagens estão surgindo nessa trama – o Pará, por exemplo, está no centro das atenções neste momento e, por isso, a Revista Leal Moreira saiu em busca dessas personalidades que estão elevando o cacau do Pará e do Brasil a um novo patamar, e conversou com elas sobre essa doce revolução.

Atualmente, segundo a Ceplac (Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira), o Pará tem como principal polo cacaueiro o município de Medicilândia, localizado na região da Transamazônica, no sudoeste do estado. A produção, que é formada por agricultores cooperados, conta com uma exportação de aproximadamente 60 toneladas/ano para a Áustria. Somente uma pequena parcela desta produção de amêndoas secas fica no Estado, e rende a produção de 800 quilos de chocolate. Esse feito já faz de nós o segundo principal produtor brasileiro de cacau, com participação de 37% da produção nacional no ano passado.

Além da produção em massa, também há a fabricação doméstica de baixa escala. É o que fazem os produtores de vários munícipios – como, por exemplo, os da ilha do Combu. Entre eles está Izete dos Santos Costa, mais conhecida como Dona Nena. Em um lugar onde as referências para endereço são furos de rio, em vez de ruas, ela é moradora da beira do igarapé central da ilha. Nascida e criada dentro de uma realidade onde o fruto é comum na rotina – o que lembra as velhas origens do cacau, bem no tempo do seu descobrimento – era tradição (e ainda é) tomar o suco puro do néctar de cacau todas as tardes com a família. Talvez por isso hoje seu chocolate seja 100% cacau.

Dona Nena conta que, desde garota, via e ajudava na colheita do fruto – que não se transformava em chocolate ainda, já que as amêndoas eram sempre passadas a um atravessador, e este as comercializava em seu estado puro. O chocolate só se fazia presente em sua casa em determinadas datas comemorativas, ou quando se intentava presentear os visitantes. “Desde pequena eu participava da produção fazendo a coleta, tirando da casca, ajudando na secagem nos tendais, reparando do sol e da chuva... Eu já via a preparação das amêndoas do cacau sendo feita pelos meus pais. Elas eram secas e vendidas para o atravessador. Sempre trabalhamos com cacau, mas não beneficiando a matéria-prima. Minha família só produzia chocolate mesmo no Natal, na Páscoa ou quando os amigos nos visitavam”.

Isso foi mudando quando Dona Nena conheceu seu sogro, Sebastião dos Santos Quaresma. Ele não só produzia o fruto, mas tinha verdadeira afeição por ele. “Compartilhávamos da mesma tradição familiar, mas ele fazia chocolate e eu percebia nele uma paixão verdadeira pelo cacau. Ele acreditava que um dia seu valor seria reconhecido aqui. Ele era muito apaixonado por essa cultura”.

Embora, no começo, a ribeirinha tenha ido pelo caminho da biojoia como fonte de renda de seu trabalho artesanal ligado à floresta, logo percebeu que sua verdadeira preciosidade a acompanhara desde a infância. Foi assim que em 2006 ela começou a produzir seu chocolate, mas com uma nova proposta: banir o açúcar da preparação em busca de um chocolate 100% cacau – resultado que até o próprio sogro duvidava ser possível. “Comecei a trabalhar o chocolate fora do pilão. Ele só dava a textura satisfatória com o açúcar, e eu não queria isso. Então fui pesquisando a melhor forma de alcançar esse objetivo, e fiz várias experiências até que cheguei ao moinho. Meu sogro dizia: Se não colocar açúcar não dá a ‘liga’ e não vira ‘pasta’. Mas eu consegui”, conta, bem-humorada.

E não foi só isso que Dona Nena conseguiu. Ela também ganhou espaço, destaque e caiu nas graças de chefs renomados como Thiago Castanho – que usa sua matéria-prima para suas receitas gourmet – e em lojas de produtos naturais em Belém e em São Paulo. Isso, além da sua participação na feira de produtos orgânicos que foi seu ponto de partida, onde pode ser encontrada até hoje.

Quem também viu no chocolate orgânico mais liberdade para criar novos sabores e sensações foi Ângela Sicilia, chef consagrada do restaurante Famiglia Sicilia. Chocólatra e fã de uma boa receita com o nobre ingrediente, Ângela acredita no potencial do produto regional – que, segundo ela mesma, “não deixa nada a desejar em comparação a chocolates internacionais, como os belgas”. “Nosso chocolate orgânico é maleável e com ele é possível conseguir diversas texturas diferentes. Dá mais trabalho, obviamente, que pegar uma barra pronta e derreter – mas, em compensação, dá mais liberdade para criar”, explicou.

Toda essa versatilidade tem um motivo específico para existir. A chef explica que o chocolate feito aqui não apresenta “uma série de misturas, não leva gordura hidrogenada, tem menos açúcar – ou nem tem... Assim, você pode usar a quantidade de açúcar que achar melhor. Pode até trabalhar com o mascavo, que é mais saudável que o comum [o refinado]. Quando você prepara o ‘seu’ chocolate, existem inúmeras formas de fazê-lo. E isso é muito mais interessante, porque é possível chegar à textura ou ao sabor que se quer”.

Como em toda a sua história o chocolate foi sinônimo de tradição, ele se tornou também memória afetiva – o que faz com que ele esteja em um eterno ciclo, onde quem o consome relembra bons momentos já vividos. Tal característica é encontrada em um conceito chamado “comfort food”.

Segundo Ângela, é a sensação de experimentar sabores  que relembram a infância, “o que você comia na casa da avó, da tia. O chocolate é um grande protagonista disso. Todo mundo tem história com chocolate. No Famiglia Sicilia, nós buscamos essa ligação afetiva em todas as receitas que fazemos. Além disso, na Itália o chocolate é sinônimo de amor, carinho... É uma das primeiras opções quando se quer conquistar alguém. Tem um chocolate famoso na Itália que se chama Bacio (cuja tradução em português é “beijo”), porque o sabor é de carinho, doçura, aproximação. Lá se trabalha muito o chocolate assim”.

Quem pensa que o chocolate de fora é melhor que o daqui está bem enganado. A chef alerta que, por um tempo, também pensou assim. Até que seu irmão, Fábio Sicilia, em uma de suas viagens para estudar os segredos da culinária internacional, descobriu que um dos chocolates mais famosos do mundo – o belga – usava a matéria-prima produzida no Brasil. “O Fabio jurava que o chocolate era belga, mas na verdade ele saía do Brasil para a Bélgica, para ser trabalhado e depois voltar de outra forma. O nosso chocolate trabalhado artesanalmente – como é feito pela Dona Nena, por exemplo – não deixa a desejar em nada a nenhum chocolate belga puro. Pelo contrário: o nosso ainda é mais puro, porque o cacau tem que ir daqui pra lá, e o nosso está sendo feito aqui. Aqui, você come um chocolate que acabou de ser preparado. Por isso é muito mais saboroso e tem muito mais tempo de perfume”.

Quem acredita nesse potencial e é um grande incentivador dessa ideia é o publicitário – que também é o idealizador do Festival Internacional do Chocolate na Bahia e no Pará – Marco Lessa. Para ele, era e é impensável que as regiões que mais produzem cacau no Brasil não transformassem sua produção no maravilhoso e sedutor chocolate. “Antes mesmo de criar o festival, não entendia como tinham regiões do Brasil fazendo eventos de chocolate – sendo polos produtores e vendedores de cacau – sem ter interesse em ver isso transformado no produto final”, relembra. “A intenção na primeira edição do festival na Bahia foi congregar todos os setores envolvidos com a produção do cacau, e com isso potencializar e criar uma demanda para o chocolate. A partir do momento em que montei os atores e organizei os produtores, trouxe grandes nomes do chocolate para falar de como empreender e tratar. Nós tivemos uma grande ascensão, de uma ou duas marcas de chocolate para quase quinze marcas na última edição. Chocolate de verdade, com muito cacau”.

Esse, aliás, é o mais forte argumento de Marco na defesa do chocolate: sua pureza, benefícios e seu sabor real ligado à fruta. Para ele, a maioria das pessoas tinha uma ideia de chocolate ligada à versão ao leite, que no geral tem muito açúcar e baixo teor de cacau. Isso já dá sinais de mudança. “No Brasil, o chocolate sempre foi muito doce. O que percebo é que, depois que algumas pessoas perceberam que é um alimento funcional e que faz bem à saúde, começaram a buscar o chocolate estrangeiro – com um teor maior de cacau, e principalmente com o sabor do cacau mais presente. Isso é uma mudança de hábito muito positiva”. Segundo ele, essa mudança de valores já pode ser vista nas lojas, onde é possível não só comprar um chocolate com alto teor de cacau, mas também verificar o quanto da matéria-prima existe no produto. “É possível perceber facilmente na prateleira do supermercado embalagens com o percentual de chocolate estabelecido, assim como o aumento na quantidade de marcas de chocolates e pequenas lojas de chocolate surgindo. Chocolate de origem, gourmet, fino”.

Atualmente, quem consome mais chocolate no mundo é a Europa. O continente é um exemplo a ser seguido pelo Brasil, já que em países como Alemanha e Inglaterra o chocolate ao leite é fiscalizado, e respeita à risca a legislação de percentual de cacau de 33% – porcentagem que também era adotada pelo Brasil no passado. “Hoje, a taxa per capita de consumo de chocolate no Brasil é de dois quilos e meio/ano – bem distante dos quatorze, quinze quilos da Europa. Os maiores consumidores de chocolate do mundo são a Alemanha e a Inglaterra. Nesses países, a legislação é mais rígida na fiscalização dos 33% de cacau. Aqui, reduziu-se para 25% – e ninguém sabe se de fato é cumprido”. Soma-se a isso o fato de que, lá fora, já se entendeu a importância da produção do cacau ligado à preservação ambiental e da mão de obra. “O povo alemão, por exemplo, se preocupa bastante com a preservação ambiental. Esse é um critério diferencial no qual eles prestam atenção. O produto deve, ainda, ser feito onde não se utiliza mão de obra escrava ou infantil. Isso deveria ser levado em consideração também por nós brasileiros, na hora de comprar um produto com mais qualidade”.

Os motivos para valorizar nossa produção local? São muitos, segundo Marco. Entre eles, fatores ambientais e sociais – além de termos “a faca e o queijo na mão” para produzir o melhor chocolate do mundo. “O potencial do Brasil está na diversidade de cacau. Nós temos mais de 35 tipos de cacau, que geram chocolates diferentes. Estamos produzindo chocolate em um país produtor de cacau, o que possibilita benefícios no âmbito social e na preservação da natureza”.

Para quem ainda tem dúvida se vale a pena arriscar neste novo – com raízes antigas – sabor, ele deixa um recado claro em relação à diferença entre o chocolate industrial e o artesanal/orgânico: “É como passar de um suco de laranja de caixa para um da própria polpa. Você percebe a indubitável diferença”.

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