Talento for export

Conheça o seleto time de desenhistas brasileiros que conquistaram os Estados Unidos.

25/09/2012 12:28
Talento for export

Um grupo de profissionais deseja se infiltrar em um cobiçado mercado internacional de negócios, que ainda mantém certas restrições para aceitar estrangeiros. O caminho até lá é acidentado e recheado de percalços, tais como a dificuldade de comunicação, por exemplo, já que as tratativas acontecem no idioma nativo, quase desconhecido para a maioria do grupo. A estratégia para a invasão é a de se misturar com os locais, utilizando codinomes híbridos (que dificultem o reconhecimento como forasteiros), além de demonstrar conhecimento sobre a cultura local – ou melhor, a estrangeira. Uma vez dentro, a missão é mostrar o talento para que a resistência acabe e a porta permaneça aberta para novas gerações.

Metáforas e analogias à parte, para desbravar o mercado americano, o caminho dos desenhistas brasileiros de histórias em quadrinhos (HQs) de ação e aventura tem nuances do heroísmo que eles próprios passaram a colocar nas páginas de empresas como Marvel e DC. Hoje, embora brasileiros façam parte da nata do mercado, ainda sonham com o crescimento desse nicho de mercado no Brasil.

As portas do mercado americano,por exemplo, foram abertas para o mineiro Marcelo Campos, hoje radicado em São Paulo, que, na infância, estava longe de saber a importância e influência que teria quando começou a desenhar HQs em casa, sem qualquer pretensão profissional. O hobby, porém, começou a mudar de status depois que seu irmão (como co-roteirista) enviou uma história que haviam feito juntos, no estilo do quadrinho “Heavy Metal”, para um concurso de talentos da extinta editora Maciota, em 1984. A partir dali, Marcelo começou a ter trabalhos publicados e viu seu hobby render uns trocados. Junto a isso, Marcelo começou a conhecer profissionais do ramo. Recebeu convites para desenhar personagens variados: dos clássicos a personalidades da TV, como Xuxa, Sérgio Mallandro e Faustão.

Quando se deu conta, Marcelo já era um desenhista profissional com portas abertas no cenário nacional de quadrinhos. Foi quando topou o desafio de desenhar para empresas americanas, mesmo ciente de que seria um “tiro no escuro”, já que não conhecia o funcionamento do mercado - e a recíproca era verdadeira. “Tinha de provar que era bom profissional: ter boa qualidade e entregar no prazo. Além disso, os artistas americanos, muitos deles, não gostaram nem um pouco da ‘invasão brasileira’”, diz. Paralelamente, Marcelo tinha que lidar com um panorama diametralmente oposto no Brasil: apesar de garantir que não via, naquela época, nada como uma barreira, incomodava o fato de ser acusado de ‘traidor do quadrinho nacional’. “Os caras me chamavam de ‘vendido’ e tudo mais. Mas estava muito ocupado, trabalhando, para pensar em barreiras”, diz, mostrando que o prestígio veio no esteio do talento. De Xuxa e Faustão, passou a desenhar e a arte-finalizar a Liga da Justiça, da DC Comics, entre outros tantos super-herois.

Pouco tempo depois, outro brasileiro pensou em se aventurar no mercado estrangeiro. Filho do criador da primeira revista em quadrinhos do Nordeste (“As Aventuras do Flama”, inspirada em programas radiofônicos), Deodato Taumaturgo Borges Filho teve, como primeiro herói, o próprio pai, de quem herdou o nome. Tendo um pai colecionador de quadrinhos, a paixão foi quase uma herança genética. Assim que ‘seu’ Deodato viu no filho o tino para o desenho, incentivou a paixão de todas as formas: ensinou técnicas, patrocinou as primeiras criações e até apoiou a delicada decisão do filho de largar a faculdade de Jornalismo para se dedicar aos quadrinhos.

Porém, nem todo o apoio amenizou as dificuldades que Deodato encontrou quando decidiu tentar viver dos quadrinhos. “Quando resolvi viver disso, é que percebi como era difícil. Na verdade, achei impossível: pagavam pouco, quase nada. Com muito suor, consegui publicar na Alemanha e Portugal, mas, no mercado americano,era difícil por não falar inglês”, lembra. À medida que suas publicações ganhavam notoriedade, crescia a expectativa de Deodato por um convite dos Estados Unidos. E ele veio em forma de teste. “Deram-me uma revista de 30 páginas, para eu entregar tudo em 30 dias: o desenho e a arte-final”, diz. Mesmo trabalhando em dois empregos - entre os quais como diagramador de jornal - o paraibano entregou o produto: ‘Santa Claws’. No Brasil, ficou conhecido como Noite Mortal, da editora Malibu.

Trabalhar em casa sem ter chefe (aparentemente) era o sonho de Deodato, que dali em diante passou a ser conhecido como Mike Deodato, por sugestão de agentes, para facilitar a aceitação do público americano - em alguns trabalhos, ele assina como Mike Deodato Jr, como forma de homenagear o pai. “Nunca fui tão feliz como fui naquela época. A primeira oportunidade que tive para largar o trabalho e viver dos quadrinhos, eu agarrei. Aquele comecinho foi inesquecível”, recorda. Assim como havia feito no Brasil, Mike foi galgando degraus: da Malibu, editora de pequeno porte, foi subindo e ganhando prestígio. Quando ficou sabendo que Marcelo Campos estava fazendo a Liga da Justiça, pediu para seu agente conseguir um trabalho com a DC Comics. “Soube que o desenhista da ‘Mulher Maravilha’ havia saído. Era uma personagem que eu nunca admirei e estava vendendo mal. Como ninguém queria, eu peguei. Fiz duas amostras coloridas, com aerógrafo e balões. Quando o editor viu, me contratou na hora. Multiplicamos as vendagens e, em um ano, tinha briga pela Mulher Maravilha”, explica Deodato, que revitalizou a franquia ao promover mais ação nos quadrinhos da heroína. “Fiz flashpages, páginas com uma cena só, de ação. Via a Mulher Maravilha como algo clássico, parado, sem graça. Mostrei o oposto disso: qualquer briguinha eu transformava em uma carnificina. Além de transformá-la em uma mulher poderosa, sexy”.

Novos caminhos à frente

Com Marcelo Campos e Mike Deodato colhendo o reconhecimento pelo trabalho, uma nova geração de desenhistas aproveitou o ‘vácuo’ para tentar se lançar no mesmo mercado. Dessa “nova safra”, faz parte o mineiro Vilmar Conrado, ou Will Conrad, como foi rebatizado quando teve seu primeiro trabalho aprovado por uma editora americana. Mas a nova alcunha poderia nunca ter acontecido.

Era fim da década de 90, a internet ainda engatinhava - era discada e, para mandar trabalhos para o exterior, muitos desenhistas esperavam dar meia-noite para pagar o pulso único telefônico - e a divulgação da produção era difícil de ser feita, o que tornava difícil a entrada no mercado. Para tentar abrir o leque de opções, Will (ainda Vilmar) conseguiu uma entrevista com uma agência de artistas em São Paulo. Com a passagem de ônibus comprada, foi à rodoviária, acompanhado pela noiva e por uma chuva torrencial. Acomodou as bagagens e voltou ao saguão de embarque para se despedir. Quando retornou ao ônibus, encontrou uma moça no seu assento - que ficava próximo ao do motorista. A garota pediu para ficar porque não tinha conseguido garantir um assento ao lado do namorado, que viajaria junto a Vilmar. Ele gentilmente aceitou a troca. “Quando cheguei ao lugar dela, vi que tinha uma goteira. Meu plano era descansar durante a viagem e chegar bem para a entrevista”, disse ele, que manteve o portfólio sempre debaixo do braço.

A goteira que perturbava ajudou: quando estava para pegar no sono, Vilmar sentiu uma gota e despertou, para em ato contínuo, olhar pela janela e perceber que uma carreta gigantesca vinha na direção do ônibus. O desenhista se protegeu como pode na hora do impacto. “Me machuquei pouco porque estava acordado. A menina com quem troquei de lugar se machucou muito, ficou presa às ferragens. O motorista morreu”, lembra, sem esconder a tristeza ao rememorar a cena surreal. Na chuva, com o braço sangrando e o portfólio ainda à mão, Vilmar saiu do ônibus e juntou-se às outras pessoas que tentavam prestar primeiros socorros às vítimas, antes da chegada das ambulâncias. Uma dessas pessoas era um caminhoneiro. O artista viu que a placa era de São Paulo e pediu carona. Mesmo cinco horas atrasado, Vilmar conseguiu a entrevista e o objetivo final: divulgar material para o exterior.

Na época, ele era desenhista, e até atingir o patamar que está hoje - um dos principais no time da Marvel - Will não dispensou trabalho em outras funções: atuou como ilustrador e arte-finalista, o que lhe permitiu ter maior domínio sobre o produto final.

Vários outros artistas do ramo, para trabalhar em alto nível, prezam pela versatilidade. Desde que decidiu que viveria dos quadrinhos (independente de como fosse), Cristiano Seixas (hoje diretor de criação de quadrinhos e animações na Big Jack Studios e Casa dos Quadrinhos) atuou em várias frentes. Desde 1988 publicando quadrinhos independentes, nutria a vontade de trabalhar internacionalmente. Em uma viagem a Orlando, em 97, conheceu os profissionais da área e o funcionamento do negócio. Em 98, foi a Chicago e conheceu artistas que já haviam trabalhado com brasileiros. No ano seguinte, começou a fazer a ponte entre os artistas nacionais e as editoras estrangeiras.

Cristiano considera que, hoje em dia, um grande facilitador do mercado é a internet. Por outro lado, alerta que o fato de artistas brasileiros conhecerem o trabalho e os traços de americanos não pode fazê-los confundir o conceito de inspiração. “Todo artista começa imitando o traço de um quadrinho que marcou quando criança. Essa fórmula pode ser repetitiva. O seu traço tem que ser original, e tem que vir da sua observação de vida. Esse é o diferencial. Se você sempre copiou, seu trabalho nunca vai ter sua cara”, conclui.

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