Tem uma xícara de açúcar?

Se você não é um eremita, você tem vizinhos. Mas você sabe quem eles são e como se chamam?

18/12/2014 18:18 / Por: Yorranna Oliveira. Fotos: Dudu Maroja
Tem uma xícara de açúcar?
Eles cruzam nossos caminhos e partilham a mesma geografia. São plurais, diversos. Partem, mas também ficam. De alguns queremos distância. Outros queremos bem perto, trocamos confidências, contamos planos e desejos. Convidamos para a privacidade das casas e deixamos participar diretamente da nossa história. No roteiro da vida em sociedade, os vizinhos são parte de uma cena cotidiana, protagonizada ora com tons de tragédia, ora com rompantes de comédia. Há romance, aventura e muito drama interpretados por uma gama de personagens comuns a todos nós. E entre desentendimentos, afinidades e lapsos de solidariedade, uma teia de afetos é costurada a cada novo dia, que cresce e se expande como as construções de uma grande cidade, sempre viva e pulsante.
 
 
Assim é Belém, feita de microcosmos sociais espalhados pela metrópole que guarda as lembranças da cidade pequena que já foi um dia, com crianças brincando na rua, vizinhos a conversar – e a brigar – na porta das casas. Ela ainda tenta conservar velhos hábitos. Mesmo que a violência e a modernidade empurrem todos para dentro de casa, há quem reconfigure a saudade e reformule a realidade para um novo cenário. 
 
 
No edifício Torre de Bari, no bairro de Nazaré, um grupo de vizinhas se reúne semanalmente [ou sempre que a agenda atribulada permite] para cafés animados nos fins de semana. Elas frequentam o apartamento uma das outras, discutem, gargalham juntas e se ajudam nos momentos de dificuldade.

Dos encontros no elevador, nas reuniões de condomínio, não foi muito difícil de se aproximar dos outros vizinhos, que compartilham afinidades e a mesma disposição para celebrar a amizade. Em uma manhã ensolarada de novembro, a anfitriã da vez foi a nutricionista Karla Bona. Na sala de estar, mesa farta, arrumada com elegância. “Ela é muito chique”, elogia a jornalista [e vizinha] Cybele Puget. Cybele criou um grupo no whatsapp, o “Amigos da Torre de Bari”, para combinar os cafés e deixar todo mundo sempre em dia sobre os acontecimentos no prédio. “Sempre gostei de confraternizar, reunir as pessoas é sempre bom. A gente bate papo, joga conversa fora, relaxa. No fim, é tudo uma grande diversão. É gostoso. No meu outro prédio não era assim”, compara Cybele. 

Na segurança e conforto dos lares, os laços reproduzem em universos particulares o que décadas atrás era o traço público e cotidiano. A grande revolução social é se permitir o contato. Independente do espaço em que ele aconteça. Ter um pouco de vontade de estar com o outro. Algo que parece tão impraticável em tempos de uma alardeada impessoalidade apontada pela filosofia e outras ciências humanas. 
“As relações de vizinhança, tal como vivíamos há três ou quatro décadas, não desapareceram definitivamente. Moro no mesmo prédio há 20 anos. Uma de minhas vizinhas é minha confidente, muitas vezes viajo e deixo uma das chaves do meu apartamento com ela, conversamos sempre, tomamos café juntos, trocamos presentes. Ou seja, essa ideia de que essas relações desapareceram é falsa. Por outro lado, relações de vizinhança são também relações de controle. A fofoca das pequenas cidades, das vilas, se reproduz também nas grandes cidades. Não há como fugir disso. Uma reunião de condomínio, por exemplo, é um lugar de fofoca. Em outras palavras, as relações de vizinhança aqui e ali se modificaram, mas elas persistem em alguns aspectos importantes, porque também isso é uma marca da cultura brasileira”, acredita o filósofo Ernani Chaves. 

Na Vila Maria de Fátima, no bairro de São Brás, a porta aberta e o muro baixo das casas evocam uma tranquilidade que contrastam com o movimento agitado e a insegurança das ruas. E é o lugar onde vizinhos também estabeleceram vínculos de amizade, como a do arquiteto José Junior com o fisioterapeuta Diogo Bonifácio. 

Amigos há seis anos, eles foram apresentados por um outro vizinho, o também arquiteto Eduardo Salame, durante uma festa de aniversário. De lá pra cá, José Junior, que adora uma festa, procura driblar as atribulações de uma agenda intensa de atividades. “Sempre nos encontramos na vila, quando vamos aos nossos trabalhos ou quando chegamos. Nesse momento, conversamos, trocamos ideias, marcamos encontros! Sempre que posso convido pras celebrações em casa: almoços de família, aniversários e até São João!”, diz José.

É a atmosfera recuperada da vida em Castanhal da infância de Diogo. “Isso pra mim era muito frequente; era muito comum os vizinhos irem pra porta das casas, jogarem conversa fora. Acho que o que acabou afastando foi essa correria do dia a dia. Hoje, as pessoas vivem mais para o trabalho. Os filhos, que eram um vínculo entre os vizinhos, hoje já começam desde muito cedo a ter uma rotina de gente grande”, avalia o fisioterapeuta. 

Se a paisagem e o ritmo da cidade se modificaram, os laços entre os moradores que a habitam permanecem enraizados em pequenos gestos. O espaço é apenas um detalhe. “Quando sofri um acidente, fiquei dois meses sem andar. Cybele não saia de casa”, recorda a administradora Conceição Batista, de 50 anos. As outras vizinhas do grupo do prédio também iam visitá-la. Atitudes e gentilezas que marcam os contornos não somente de uma amizade, mas reforçam como as pessoas definem e traçam as histórias que constroem nos locais por onde passam. 

“Se entre a casa de minha infância e a casa do vizinho havia um portão no quintal, hoje temos um interfone, que exerce a mesma função, a de facilitar a comunicação sem que, entretanto, estejamos um na casa do outro, num face a face. Isso não é o fim do mundo e nem necessariamente ruim. A diferença é o modo como essa sociabilidade se expressa. Entretanto, não quero pintar um quadro romântico, idealizado demais de nossa cultura. Onde há vizinhança, há conflito, em qualquer classe social”, pontua Ernani. Na de José Junior e Diogo Bonifácio, eles garantem, os dilemas que surgem logo têm solução. “Todas as dificuldades que aparecem a gente chega, conversa e resolve na hora”.

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