Se ler é viajar, seguir os caminhos da literatura como roteiro pode transformar uma viagem em uma experiência tão lírica quanto um poema de Pablo Neruda. Pode elevar ao fantástico, como um conto de Gabriel García Márquez, o passeio pela cidade ainda desconhecida.
Foi esta a pretensão ao programar nossa viagem para o Chile e para Colômbia. Os ‘guias’ levados na bolsa foram os livros de memórias “Confesso que Vivi”, do chileno Neruda, e “Viver para Contar”, do colombiano García Márquez, dois vencedores do Prêmio Nobel de Literatura.
A preferência literária foi o que motivou a escolha dos destinos, além da quase pueril ilusão de que chegar até os lugares que influenciaram a vida e a palavra desses dois grandes escritores, fosse nos aproximar também, de alguma forma, daquilo que lhes faz únicos.
Santiago de Neruda
No Chile, a vida, obra e personalidade de Pablo Neruda estão retratadas em suas três casas, hoje transformadas em museus pela Fundação que leva o seu nome e cuida de todo o seu acervo. Em Santiago, ir visitar “La Chascona” (“a descabelada”, em língua indígena quíchua), foi nosso primeiro passo. É a única casa do poeta que não tem vista para o mar, já que “Isla Negra” e “La Sebastiana” estão na costa do Pacífico.
A arquitetura do lugar é pouco convencional. Localizada em um terreno íngreme, no pé do morro San Cristóbal, a propriedade é dividida em três prédios, interligados por jardins e passagens secretas. Neruda imprime sua paixão pelo mar em todos os lugares que morou, mas na casa de Santiago o que se destaca mesmo é o amor por Matilde Urrutia, conhecida por seus cabelos desgrenhados. Por isso, o nome da casa.
Ali se encontram os manuscritos de “Os Versos do Capitão”, presenteados a Matilde – eram todos dedicados a ela – e um quadro pintado pelo mexicano Diego Rivera, onde o perfil de Neruda aparece entre os cabelos ruivos e desarrumados dela. Eles viveram juntos até a morte do poeta.
“La Chascona” é a única casa que guarda marcas da ação dos militares durante o golpe de 1973, quando todas as propriedades de Neruda foram fechadas e depredadas. Ele morreu em 23 de setembro desse mesmo ano, doze dias depois que Augusto Pinochet assumiu o poder.
Conhecemos o interior da propriedade com um pequeno grupo levado por um guia. Em todos os museus é oferecido este serviço. Os guias são sempre muito bem preparados, sabem detalhes da vida do poeta e recitam trechos de poemas. É preciso comprar ingressos e os grupos são formados apenas em espanhol e inglês.
Poeta e colecionador
Neruda era mais que um colecionador, ele se autodenominava ‘cosista’ (“coisista”, em português), pelo exagerado número de coisas que guardava. Na cidade de Valparaíso, na “La Sebastiana”, parecem infinitas as coleções de garrafas, conchas do mar, taças coloridas, barcos e inusitados objetos. A casa parece fincada no alto do morro de Bela Vista. Das janelas, a vista do azul inédito do Pacífico é uma realidade poética.
Em “Isla Negra”, casa localizada em um pequeno povoado na costa, ele guardava, por exemplo, um cavalo de papel maché em tamanho natural com três rabos postiços. Entre a coleção de carrancas de proas de navio, Neruda apreciava uma em particular, chamada “Maria Celeste”, porque no inverno “escorriam lágrimas de seus olhos”. O poeta dizia que ela chorava de pena. Os amigos contrariavam, explicando que era a umidade condensada nos olhos de louça da estátua. Segundo o guia, ele rebatia dizendo: “não sou cientista, eu sou poeta. Para mim, ela chora, e na primavera volta a sorrir”.
Imaginação e genialidade
A impressão que se tem ao conhecer tantas estantes cheias de objetos e paredes abarrotadas é de participar da imaginação e genialidade do poeta, mesmo como espectador. Suas casas eram preparadas para a criação. A decoração é colorida e excessiva, mas mesmo assim se percebe a rima.
“Isla Negra” é a principal delas. Ali, Neruda e Matilde estão enterrados de frente para o mar. No ambiente, pode-se quase que tocar em um estilo de vida que forjou obras como “Canto Geral”, “Cem sonetos de Amor” e o próprio livro de memórias “Confesso que vivi”, finalizado em um daqueles quartos.
Para chegar até lá, alugamos em Santiago um carro e descemos a Rota 68 para o litoral Pacífico-sul lendo trechos deste livro, que descrevem as cidades e contam os motivos que levaram o poeta a construir aquelas casas. O Chile impressiona pela educação das pessoas, sua organização e limpeza, mas nem deveria. Era de se esperar algo assim de um lugar onde um poeta é também um herói, um deus.
Do Chile para a Colômbia. O privilégio de caminhar nas terra de Gabo
O roteiro de Gabo, como também é chamado García Márquez, começou por Bogotá, aonde ele chegou ainda adolescente para continuar os estudos. É também o lugar que marca a publicação de seus primeiros contos, no suplemento literário El Espectador. O bairro da Candelária, no centro antigo, com suas ruas estreitas e casas coloniais espanholas, ainda guarda a atmosfera dos cafés por onde ele forjou seus primeiros passos na literatura. “A instituição que diferenciava Bogotá eram os cafés do centro, onde mais cedo ou mais tarde confluía a vida de todo o país”, definiu o autor de “Cem Anos de Solidão” em “Viver para Contar”.
Não encontramos o El Molino, “o café dos poetas mais velhos”, como ele descreve no livro, mas mesmo sentados à mesa do Juan Valdez Café foi possível vislumbrar um pouco a época em que o iniciante escritor tentava aprender sobre literatura escutando as conversas dos poetas consagrados nas mesas vizinhas. Na Candelária está localizado o Centro Cultural Gabriel García Márquez, que possui uma grande livraria e espaços para diversos eventos culturais.
Páginas da história colombiana
O passeio pela Candelária apresenta muito da história do país colonial e republicano. A Praça de Bolívar e a Avenida Sétima são paradas obrigatórias. Por ali também estão o Museu Botero, que tem entrada gratuita e expõe também obras de artistas como Dalí, Miró, Klimt e Picasso; o Museu do Ouro; e a Biblioteca Nacional, onde uma sala de música foi transformada pelo escritor em refúgio preferido.
A Avenida Sétima foi palco do assassinato do candidato popular à presidência da República, Jorge Eliecer Gaitán, em 1948, o que desencadeou a onda de protestos e violência que destruiu o centro de Bogotá, “El Bogotazo”, e se estendeu por outras cidades do país. Em Viver para Contar o fato é descrito em detalhes. Gabo chegou à cena do crime minutos depois do acontecido. Aquele 9 de abril marcou também a vida e a produção literária de García Márquez, pois o levou para Cartagena de Índias, na costa caribenha da Colômbia, um lugar mais seguro.
“La Heróica” e a luz malva das seis da tarde
Chegar a Cartagena de Índias, La Heróica, é entrar em um universo mágico cercado por muros e baluartes. Mesmo muito cheia de turistas, a cidade não perde o poder sobrenatural de arrebatar o visitante. Foi assim para Gabo, que não tinha em seus planos permanecer ali por muito tempo, mas em chegando lá, não mais quis partir. “Bastou dar um passo dentro da muralha para ver em toda a sua grandeza a luz malva das seis da tarde, e não consegui reprimir o sentimento de ter tornado a nascer”, conta no livro de memórias.
Ao contrário de Bogotá, onde “Viver para Contar” é o único ‘guia turístico’ do gênero, em Cartagena é possível fazer passeios guiados que remontam todos os passos de Gabo ao chegar à amurallada e apontam os cenários de fatos importantes de seus romances. Escolhemos a opção de audioguias, uma espécie de telefone que conta histórias ao discar números. Com o mapa em mãos, cada uma segue o roteiro sozinho – nada de grandes grupos correndo atrás de uma bandeirinha. São ao todo 35 estações.
Oferecido em espanhol, francês, italiano, inglês e alemão, o tour requer concentração. Porém, dá para repetir os trechos em áudio a hora em que for necessário. Escolhemos o espanhol, para ouvir o idioma do autor. Segundo a Tierra Magna, empresa que desenvolveu o recorrido, já está sendo providenciada a opção em português. Todo o roteiro tem o respaldo da Fundación Gabriel García Márquez para El Nuevo Periodismo Iberoamericano, criada pelo próprio Gabo e seu irmão Jaime.
A cidade dos amores contrariados
O passeio começa no Templo de Santo Domingo, no centro da amurallada, onde há um monumento de Botero. Preparados para caminhar, basta ir seguindo o mapa. A cidade é quente, mas os balcões floridos das casas garantem sempre uma boa sombra para seguir as histórias reais e imaginárias de Gabo.
O roteiro leva ao lugar no qual tomou a decisão de desistir do Direito para ser escritor, a conceituada Universidade de Cartagena; à redação do El Universal, quando iniciou o ofício da reportagem; e à linda propriedade que hoje é sua casa. É impactante passar por aquelas ruas e recordar que, aos 85 anos, o escritor está perdendo suas memórias por causa da demência senil. Ainda mais quando recorremos pela cidade momentos dos amores contrariados de Florentino Ariza e Fermina Daza, do “Amor nos Tempos do Cólera”, e Sierva Maria de los Angeles e Cayetano Delaura, de “Do Amor e Outros Demônios”.
O óxido do tempo
Passamos pelo convento onde Sierva Maria foi internada para os exorcismos, hoje o luxuoso Hotel Santa Clara, e pelo Portal de Doces onde foi mordida pelo cão raivoso e começou sua tragédia. No Hospital Naval, ficamos imaginando o sobrevivente que inspirou o “Relato de um Náufrago”. E na Torre do Relógio, porta principal da muralha, desenhou-se diante dos olhos “O General em seu Labirinto”.
Em alguns momentos a cidade, cercada por 11 quilômetros de muralhas, construídas para protegê-la de corsários ingleses e franceses, os “piratas do Caribe”, parece desamarrada do tempo. É fascinante. Atrás dos muros e baluartes, casas coloridas, avarandadas e floridas, e à frente, o mar caribenho. Respirar daquela brisa fantástica ressignifica tudo o que já foi lido da obra do autor.
Gabo diz que em Cartagena as coisas, como as estátuas, não estavam preservadas contra o óxido do tempo e sim ao contrario: “preserva-se o tempo para as coisas que continuavam tendo a idade original, enquanto os séculos envelheciam”. Só indo até lá para compreender isso.