A casa dos assovios

13/02/2015 16:32
A casa dos assovios
A casa não era um castelo, mas ela estava feliz. A rotina não a entediava como temia nos piores pesadelos. Trabalhava de segunda à sexta e tirava sábados, domingos e feriados para o ócio ou alguma estripulia que envolvesse sol e banhos de rio, embora preferisse o mar cujo som tranquilizante e a imensidão estavam a quilômetros. Entre uma tarefa e outra, planejava viagens de luas-de-mel sem que houvesse casamento formal. Achava tenebrosa a ideia de se expor diante de convidados, vestida de branco, para consagrar os votos de amor diante de um homem com vestes de mulher – sim, considerava a batina uma peça feminina. Entre risos, os dois diziam que se casariam numa chácara sem a presença de padre algum e com farta distribuição de feijoada para, no máximo, quatro pares de amigos próximos e nenhum parente.

Ele, por sua vez, levava mais a sério. Em segredo, guardava dinheiro para alianças de mais de dez gramas de ouro com inscrições românticas na parte interior, como viu em um filme ou ouviu de um amigo. Pensava em uma festa completa com “Ave-Marias”, coreografias, banquete e buquês, no entanto, estava certo de que ela jamais toparia. E fantasiava sozinho e encabulado, invertendo os papéis de noiva casadoira e noivo irreverente. No mais, pagava o aluguel em dia da casa que assoviava em dias de muito vento, fenômeno que achava ótimo porque ela sentia medo do barulho e o apertava na cama sem dizer que o abraço servia para aplacar o pavor. Prometiam mudar de imóvel sempre, mas já estavam há mais de dois anos sendo presenteados de vez em quando com a estranha sinfonia.

Algumas noites também reservavam encontros inesperados quando ambos acordavam de madrugada, cada um a seu tempo. O primeiro, quase sempre ele, mantinha os olhos abertos desafiando o breu do quarto até que a outra despertava. Percebiam a coincidência e tateavam o colchão para se achar, confortar qualquer sobressalto e retomar o sono. Quando não funcionava, falavam sobre o futuro até que a garganta secasse e, quase sempre, ela dormia primeiro. Não foram tantos, mas os episódios ficaram como lembrança constante depois que eles se separaram e tomaram rumos diferentes.

Muito antes do fim, ela purificou as reminiscências de amores fracassados para ele, que nunca mais pensou nos casos passados, os que não conseguia se dedicar por completo e manter o interesse; os que as mulheres até se interessavam sinceramente no começo, mas a paixão se diluía com os dias e a falta de jeito. Com ela, ele finalmente encontrou o tom certo e o equilíbrio para um amor duradouro embora a vida, mais tarde, provasse que ele estava errado.

Para ela, a grande novidade nele foi a aproximação sem ansiedade que outros homens demonstravam. Nunca teve pressa e conversava sobre tudo com encantamento visível sem mencionar seu real objetivo, porém. Como se escondesse o óbvio sem nenhum pudor e, contraditório, com todo o pudor do mundo de transparecer a paixão rasgada que já sentia.

Encaixaram-se na vida com perfeição até as desistências vindas dos desgastes de sempre. Surpreenderam os amigos e conhecidos com o anúncio de separação. Mudaram de cidade, encontraram cada um seu amor novo, casaram-se. Ele como sempre sonhou, ela contrariada com o véu e a grinalda. Contudo, por toda a vida, sempre que acordavam no meio da noite, no escuro, lembravam das mãos tateando o colchão, das conversas intermináveis, dos abraços de medo e da casa dos assovios sem nunca mencionar as memórias a mais ninguém, partilhando-as sem saber cada um em seu novo lugar.

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