Especial
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Lotado, o auditório não economiza na agitação e os ruídos da plateia podem ser ouvidos do lado de fora do estúdio. As Chacretes capricham na coreografia, os convidados estão a postos e a noite tem tudo para ser mais um sucesso de público, com o programa líder absoluto de audiência, um fenômeno que deve catapultar os cantores ao topo das paradas musicais e agradar em cheio aos patrocinadores do horário. Está tudo pronto para entrar no ar, ao vivo, o Cassino do Chacrinha, com o mais famoso, querido e irreverente apresentador da televisão brasileira. “Qual será a fantasia que ele vai vestir nesta noite?”, se pergunta o telespectador, ansioso diante da tevê.
O programa está prestes a começar e, nos bastidores, Abelardo Barbosa toma remédios para conter a dor de barriga. Os dois comprimidos de Imosec, um medicamento usado para diarreia, não são suficientes para domar a “cólica emocional”, que ele sente momentos antes de pisar no palco (prevenido, caso o remédio não surtisse efeito, chegava a vestir até três cuecas por baixo da calça de lamê). Apesar de comandar grandes auditórios há décadas e ser líder de audiência, ele teme que ninguém apareça para assistir ao programa ou que o Ibope caia. Mas apesar do nervosismo, restam-lhe forças para reclamar de detalhes que vão da produção à equipe técnica. Utilizando-se muitas vezes de palavrões, ele reclama da luz, do som, das câmeras... Para o apresentador, nada está bom o suficiente. O mal-estar só finda quando ele está finalmente no palco, sob os holofotes.
Personagem criado por Abelardo Barbosa, o mesmo carismático “Chacrinha” que faz sucesso na telinha e diante de um auditório lotado é também o homem inseguro, com traços de maníaco depressivo, que não consegue lidar com a ansiedade antes de entrar no ar e cujo perfeccionismo não lhe permite se dar por satisfeito. Mostrar as duas faces dessa mesma persona é um dos maiores trunfos de “Chacrinha – O Musical”, espetáculo que aborda a história do maior comunicador da televisão brasileira. Com direção de Andrucha Waddington e texto de Pedro Bial e Rodrigo Nogueira, o musical tem atraído um público ávido para conhecer ou matar a saudade do Velho Guerreiro, ocupando praticamente todas as mais de mil poltronas do Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Mas o maior mérito da peça é, certamente, a reconstituição, no teatro, da experiência de estar em um auditório televisivo comandado por Chacrinha. Tudo graças a uma impecável produção de figurinos, cenários, apuro musical e a desenvoltura de um elenco à vontade no “cassino”.
Para dar conta de um personagem tão complexo, dois atores interpretam o comunicador, em diferentes fases. Com um cenário inspirado na literatura de cordel para remeter à origem nordestina de Chacrinha, o jovem Leo Bahia faz o personagem desde menino até os seus 40 anos. “Pra mim, o Abelardo era alguém que estava definitivamente à frente do seu tempo, com uma imaginação e intuição muito afloradas, sem as limitações de pensamento da época que as pessoas costumam ter. Por isso ele tinha uma naturalidade em lidar com coisas que são tabu até hoje”, define o ator. Nascido no interior de Pernambuco em 1917, na cidade de Surubim, José Abelardo Barbosa de Medeiros era filho de um pequeno comerciante, que convivia frequentemente com dificuldades financeiras devido à falência de seus negócios, o que trouxe para Abelardo desde cedo o senso de urgência e a necessidade de buscar novas formas de ganhar dinheiro. Mais tarde, esse aprendizado seria útil a Chacrinha, que lidava diretamente com o setor comercial de seu programa e tinha de atrair anunciantes.
Apesar das dificuldades, o jovem ingressou na Faculdade de Medicina do Recife, onde encontrou uma movimentação musical que influenciou o destino de sua vida para sempre. Lá também teve a primeira experiência em rádio, quando deu uma palestra e acabou conseguindo um trabalho temporário como locutor. Um acaso fez com que ele viesse parar no Rio de Janeiro, onde se manteve em empregos temporários até emplacar, em 1942, em plena era de Ouro do Rádio, um programa noturno de música carnavalesca na Rádio Clube de Niterói, que funcionava em uma pequena chácara. Assim surgia o “Rei Momo na Chacrinha” (local de onde advém o nome do personagem), que depois do carnaval mudaria para “Cassino da Chacrinha”, também no feminino, até que alguns anos depois, o apresentador viesse a ser conhecido apenas como Chacrinha. A vida noturna no Rio de Janeiro girava em torno dos grandes cassinos, como o da Urca e o Atlântico. Batizar o programa como “Cassino da Chacrinha” pareceu, portanto, uma ideia bastante apropriada. Logo ele se tornaria o rei dos disc jockeys – ou o “maluco dos discos”.
Quinze anos depois e ainda nos primórdios do veículo, Chacrinha estreava na TV Tupi, passando, pelas três décadas seguintes, por praticamente todas as grandes emissoras (Excelsior, Bandeirantes, Record e, por duas vezes, Globo), tornando-se um fenômeno de audiência sem comparação na televisão brasileira. “No final das contas, eu credito essa repercussão da peça ao próprio Chacrinha, que sempre foi um sucesso. Um personagem que tinha uma forte empatia e que deixou uma marca muito grande na memória afetiva das pessoas”, destaca Stepan Nercessian, que vive a fase madura do apresentador. Elogiado por sua atuação, ele tem impressionado o público pela semelhança física com Chacrinha. Além do ótimo trabalho de caracterização, ele conta com o mesmo “efeito” da voz, esganiçada, assim como a de Abelardo, um inveterado fumante – ao longo da conversa de cerca de meia hora com a Revista Leal Moreira, em seu camarim, o ator consumiu três cigarros.
Stepan, que acompanhava o programa do Chacrinha e que chegou a participar como convidado mais de uma vez, também guarda suas recordações cheias de afeto. “Os programas de auditório atuais que se apresentam como anárquicos, em que ‘pode tudo’, são na verdade tentativas incompletas, que esbarram em estereótipos. Para chegar naquele nível de anarquia, o Chacrinha passava antes por uma angústia, um perfeccionismo muito grande. Ele não fazia o programa como quem promove uma bagunça”, defende o ator, que usou a memória para compor o personagem e estudou suas falas, bordões e movimentos em vídeos da época. “A expressão ‘Alô, ê! Alô, ê’, que tenho usado bastante, começou com ele testando o som, para checar o retorno do microfone. Mas que depois acabou virando um tique nervoso e passou a fazer parte do áudio usual do programa”, observa.
O Velho Guerreiro seguiu para a TV Rio, onde seu programa ficou sob a direção de Boni, a pedido do dono da emissora. Abelardo não se absteve de levar as discussões até as últimas consequências na defesa de suas atrações e dos formatos que propunha, por mais esdrúxulos que estes pudessem soar para o diretor. A ousadia era tão desmedida que a própria emissora anunciava, assim que o programa ia ao ar: “A TV Rio tem a coragem de apresentar... A Discoteca do Chacrinha”. Na década de 1960, o programa despontava como o mais popular da telinha. O comunicador propôs uma nova forma de apresentar que rompeu completamente com o formato consagrado dos programas de auditório, imprimindo um estilo inconfundível e uma dinâmica particular. Em função disso, recebeu duras críticas e foi censurado pela ditadura.
Estava sempre em busca de oferecer algo inédito para o público, seja com a criação de novos quadros, seja incrementando cada vez mais seus figurinos, adornando suas fantasias de índio, marajá, palhaço, mosqueteiro, marinheiro e até de Napoleão... As fantasias usadas por Chacrinha eram uma atração à parte. Autor da biografia de Chacrinha, Denilson Monteiro ressalta que o que mais o surpreendeu sobre a vida de Chacrinha foi o seu grau de obsessão pelo trabalho. “Foi o que me deixou mais impressionado. Antes de seu programa começar ele caía num nervosismo, tomava remédio para não passar mal e, quando acabava o programa, voltava tudo de novo: queria saber quantos pontos deu no Ibope, saía para jantar com a equipe e o prato principal era o programa anterior. Depois já falavam sobre o próximo programa”.
Organizadora de publicações sobre o patrimônio cultural brasileiro, a editora Nubia Melhem Santos observa que a estrutura de seus programas (A Discoteca, A Buzina e o Cassino), mesclava diferentes elementos, que iam do teatro de revista aos cassinos, passando pelo circo e, claro, pelas festas populares nacionais. “Tudo por ele comandado, com autoridade e um tipo de humor cáustico que não poupava ninguém, a começar por si mesmo, sempre fantasiado e misturando muitos adereços, numa espécie de parafernália visual desafiante”, destaca Nubia, que revela que a bagunça geral era apenas aparente. “No meu programa, tudo é organizado, só eu improviso”, exemplifica ela, citando uma declaração do Velho Guerreiro.
Quando estava no ar, o apresentador não obedecia um ordenamento espacial. Se movimentava aleatoriamente, andando de um extremo ao outro do palco. Não raro, passava na frente das câmeras, tapando a visão do espectador que assistia à performance dos cantores. “O Chacrinha forçou a tevê brasileira a criar uma linguagem visual especialmente para ele. Em termos de programas de auditório, foi ele quem promoveu as maiores inovações, obrigando o operador a tirar a câmera do tripé e fazer movimentos para poder acompanhá-lo. Foi o Chacrinha quem obrigou o uso do corte descontínuo na telinha, por exemplo”, analisa Stepan Nercessian.
E se lhe desse na telha, também interrompia a fala de seus convidados ou, de surpresa, lhes dava apelidos ao vivo. Fazia tudo isso uma, duas, várias vezes, sem que isso tudo, no entanto, atrapalhasse o artista. Dali a poucos dias, as canções estavam tocando nas rádios. Todos queriam cantar em seu programa, uma verdadeira vitrine para o mercado fonográfico. Por causa da força em promover artistas e também por seu visual tropical carnavalesco, que serviu de inspiração, Chacrinha foi adotado como “pai do Tropicalismo”, pelos artistas do nascente movimento. Gilberto Gil, um de seus mais famosos nomes, compõe “Aquele Abraço”, em sua homenagem: “Alô, alô, seu Chacrinha / Velho guerreiro / Alô, alô, Terezinha / Rio de Janeiro / Alô, alô, seu Chacrinha / Velho palhaço /Alô, alô, Terezinha /Aquele Abraço!”.
Vítima de câncer, Chacrinha faleceu aos 70 anos, em 1988, e sua despedida foi acompanhada por mais de 30 mil fãs. Durante longas décadas, foi casado com Florinda Barbosa, com quem teve três filhos: Jorge Abelardo e os gêmeos José Renato (Nanato), que morreu em novembro do ano passado, e José Aurélio (Leleco), colaborador essencial nas pesquisas feitas para a produção do musical, no processo de composição dos personagens pelos atores e de consulta para a biografia de seu pai. Pergunto a Leleco, que assistiu ao espetáculo incontáveis vezes, se ele acha que o pai gostaria do resultado ou, fazendo jus ao perfeccionismo que era característico, diria que algo está completamente errado e que tem de melhorar isso ou aquilo. “Tenho certeza de que, junto com meu irmão Nanato Barbosa, ele está vibrando no céu com mais esta magistral homenagem a ele. Realmente é uma reprodução de sua história e trajetória de sua vida, que foi muito sofrida e perseguida pela censura. Quanto ao perfeccionismo, era sem dúvida a maior parte de seu grande sucesso. Ele reclamava para bem do programa, que tanto se dedicava em realizar. Ele foi o maior comunicador de televisão de todos os tempos. Já tentaram imitá-lo, mas até hoje não surgiu ninguém parecido. E acredito que não aparecerá”.