Nascido na Gávea, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, em 19 de outubro de 1913, Vinicius de Moraes era declaradamente apaixonado por sua cidade natal. Andarilho, aventurou-se madrugada adentro pelos mais diversos ambientes do território carioca – especialmente bares, restaurantes, boates e, claro, botecos. Estes lugares, que serviram de cenário para encontros do poeta com amigos, testemunharam a descoberta de suas paixões ou o surgimento de várias de suas parcerias musicais, também guardam até hoje um pedaço de sua memória e também da história da Bossa Nova. Considerado o “guru” do movimento musical que alterou para sempre a trajetória da canção popular brasileira, Vinicius de Moraes elevou a figura do compositor-cantor a outro status no país. Fosse por meio da poesia que imprimiu em letras de músicas, fosse emprestando sua voz a canções que se tornariam clássicos do gênero ou, ainda, ostentando o inseparável copo de uísque enquanto era idolatrado pelos jovens – alguns nem tanto assim – fãs.
A infância foi marcada por algumas mudanças de endereço: morou em diferentes perímetros de Botafogo, também na Zona Sul, para depois mudar-se com a família para a Ilha do Governador, já na Zona Norte. Lá entrou para o coro da igreja, jogou futebol e fez muitos amigos. Numa época em que Copacabana e Ipanema eram praias praticamente desertas e no seu entorno se podia assistir aos primeiros passos de um longo processo de urbanização, Vinicius cresceu entre o mar e a chácara do avô, localizada não muito distante da casa onde nasceu, na Gávea. Recebeu uma formação rigorosa, mas também esteve em contato com a música popular e gostava de ouvir o violão dos antigos escravos. Seus pais revelavam vocação artística: a mãe tocava piano e o pai, que dava aula de Latim, Francês, piano e violino, escrevia poemas, era sobrinho de poeta e neto de um historiador. Já sua mãe vinha de uma família de boêmios. Aos 9 anos, Vinicius escreveu seu primeiro poema de amor – um soneto para uma coleguinha.
O tom lírico e apaixonado de suas poesias, cujos temas quase sempre estavam ligados ao amor e à figura feminina revela a personalidade de um homem generoso, terno e sedutor. Apaixonado por mulheres, casou-se nove vezes e teve cinco filhos: Suzana, Pedro, Georgiana, Luciana e Maria. Na definição do amigo e admirador Carlos Drummond de Andrade, foi o único poeta brasileiro que viveu como poeta.
Em seu currículo profissional constam ainda as atividades de compositor, jornalista, teatrólogo e diplomata. Mas talvez nenhuma dessas funções ele tenha exercido com tamanha desenvoltura quanto a de boêmio. Vinicius é de um tempo em que a “botecagem” – prática obrigatória de todo legítimo bon vivant – era uma atividade a ser exercida por profissionais e não apenas aos fins de semana. Ser Vinicius de Moraes significava, conforme a definição do jornalista Ruy Castro, “entrar e sair de paixões imortais, aventurar-se por todas as formas de criação, preferir a alvorada ao crepúsculo, trabalhar muito e, se possível, vagabundear ainda mais”. Logo, ser boêmio era uma condição indispensável ao Vinicius way of life.
Sua figura era querida por intelectuais, arquitetos, artistas plásticos, jornalistas, músicos e escritores e poetas. Nomes do porte de Oscar Niemeyer, Mário de Andrade, Lúcio Rangel, Rubem Braga, João Cabral de Melo Neto e Paulo Mendes Campos. Todos o puxavam em sua direção e chegavam a disputar sua companhia nas rodas de conversa e mesas dos estabelecimentos. Isso porque sua presença trazia ao ambiente um ar mais leve; é como se imediatamente o tornasse mais poético, menos quadrado, mais Vinicius.
São alguns desses lugares que iremos visitar nas próximas páginas. Mas a parada principal de nosso roteiro é o próprio poeta, que, como definiu Caetano Veloso, “não era apenas o maior letrista da música popular brasileira moderna: era também um lugar no Rio de Janeiro em torno do qual muitos encontros, desencontros e aproximações se davam. Era um lugar onde a gente convivia: Vinicius de Moraes”. Bom passeio!
Centro
Itamaraty
Uma joia neoclássica na conturbada vizinhança da estação de trem Central do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, o Palácio do Itamaraty foi palco de (algumas) alegrias e (muitas) decepções para Vinicius. Sob a sombra das imponentes palmeiras que enquadram um belíssimo espelho d’água, o poeta descansava o espírito para a romaria noturna nos bares e colecionava amigos, como o diplomata Affonso Arinos de Melo Franco.
No intervalo do almoço, quando não ia à Casa Villarino, a escolha natural eram os restaurantes localizados nos arredores da Praça da República: o Tim-tim por Tim-tim – cuja maior glória foi ter servido a atriz Sarah Bernhardt –, o Pena fiel e o Cedro do Líbano, entre outros. Mais tarde, a carreira diplomática possibilitaria que ele morasse em cidades como Los Angeles e Paris, colaborando para tornar mais cosmopolita o já viajado Vinicius.
Numa dessas estadas como diplomata, em Montevidéu, enviou uma carta ao Itamaraty pedindo para voltar ao Brasil. A justificativa? Não era “um problema material, de dinheiro ou de status profissional. Tudo isso é recuperável”. Era “um problema de amor. Pois o tempo do amor é que é irrecuperável”. Somaram-se ao afastamento do Brasil e dos amores, algumas dificuldades que a diplomacia impôs à carreira musical: a reprovação contínua dos superiores, que não gostavam nada dos shows e de suas companhias, muito menos que fosse fotografado rodeado de garrafas e copos de bebida. Para continuar se apresentando, precisava seguir as condições rigorosamente: nada de cobrar cachê e cantar sempre de terno e gravata – logo ele que dizia detestar “tudo o que oprime o homem, inclusive a gravata”.
Após 1964, com os militares no poder, a fase como diplomata estaria com os dias contados. O anúncio se deu em 1969, com um memorando curto e direto: “Assunto: Vinicius de Moraes. Demita-se esse vagabundo”, teria escrito o então presidente marechal Arthur da Costa e Silva.
Em 2010, 30 anos depois de sua morte, Vinicius foi homenageado pelo Itamaraty e “promovido” ao posto de ministro de primeira classe, equivalente ao de embaixador, em uma cerimônia em Brasília. A sede carioca abriga a placa feita em homenagem ao poetinha, com a inscrição de seus versos.
Casa Villarino
Houve um tempo em que Tom Jobim andava para cima e para baixo com uma maleta onde guardava suas partituras. Ele era contratado da gravadora Continental, mas ainda era obrigado a tocar piano em boates, para complementar o orçamento e pagar o aluguel do pequeno apartamento onde morava com a esposa e o filho, no final de Copacabana. Tom se apresentava em bares e inferninhos da Zona Sul, onde ouvia os pedidos mais esdrúxulos de música feitos por bêbados e tinha de tocar os mais diversos gêneros musicais, alguns dos quais detestava.
Até que sua sorte mudou em um fim de tarde, na Casa Villarino, que reunia a fina flor da boemia e intelectualidade carioca dos anos 1950, no Centro do Rio. Não por acaso, chamavam a casa de “uíscritório”. Foi lá que Tom e Vinicius foram formalmente apresentados, pelo jornalista Lúcio Rangel, em 1956. O poeta e diplomata estava recém-chegado de Paris, onde vinha desempenhando a função de vice-cônsul por 3 anos. Estava particularmente insatisfeito com sua vida, vivendo uma crise de identidade, aos 43 anos. Em 1954, sua peça “Orfeu da Conceição” foi premiada e ele pediu licença do Itamaraty para voltar ao Brasil. Buscava um músico para compor as canções da peça e Lúcio sugeriu o nome de Tom. Marcaram o encontro no Villarino.
Ao chegar ao local, o tímido maestro sentou-se a uma mesa e pediu ao garçom uma cerveja – o dinheiro não dava para ele “bancar” uísque – sendo logo abordado por Lúcio, que o levou à mesa onde estava Vinicius, como sempre, rodeado de gente. Ao ser apresentado ao poeta e diplomata, Tom cometeu uma gafe que entraria para o folclore da música popular brasileira. Quando convidado a compor as músicas, respondeu, desastradamente, “Mas tem um dinheirinho nisso aí?”. A pergunta de Tom seria lembrada durante décadas pelos envolvidos no episódio.
Na verdade, Tom e Vinicius já se conheciam das noites no Clube da Chave, em Copacabana, clube tradicional frequentado por nomes do rádio e da televisão e um dos locais onde o maestro piano tocava na noite, sujeito a toda sorte, inclusive de calotes. Mas o Villarino será sempre lembrado como o local onde foi selada a histórica parceria que elevou a canção brasileira a um novo patamar de modernidade, elegância e beleza.
Hoje, a Casa Villarino é um aconchegante restaurante com uma delicatessen charmosa e que guarda a memória da uisqueria mais famosa do Centro da cidade. O destilado é, ainda hoje, a bebida mais consumida.
Zona Sul
Laranjeiras
Conjunto residencial Parque Guinle
Localizado no bairro de Laranjeiras, na Zona Sul da cidade, em um vale aos pés do morro da Nova Sintra, o Parque Guinle é um oásis nas proximidades dos movimentados Largo do Machado e a Rua das Laranjeiras, e combina uma área nativa de Mata Atlântica com a arquitetura de Lúcio Costa e o paisagismo de Burle Marx. Foi justamente em um apartamento de um daqueles prédios da rua que contorna esse parque que Vinicius e Baden Powell ficaram trancados dias a fio, na companhia de alguns sanduiches e muitas garrafas de uísque, compondo incessantemente o que batizariam de “Afro Sambas”. Por vezes, fechavam as janelas e se desligavam do mundo. Não queriam ser incomodados, nem mesmo pela passagem do dia para a noite e vice-versa. Mas nos poucos momentos em que abriam as cortinas, estavam diante de uma vista inspiradora. Viraram madrugadas debruçados no violão e, quando se deram conta, já estavam morando juntos – sem que isso tivesse sido combinado – por três meses.
O primeiro encontro, na Boate Plaza, em Copacabana, onde se conheceram, foi um pouco desastroso. Segundo o violonista, os dois não conseguiram sequer apertar as mãos. “Ambos estavam com a mão direita ocupada com um copo”. Mas logo eles se entenderiam para formar uma das parcerias mais intensas e prolíferas de Vinicius.
Baden levou Vinicius de volta àquele mundo do samba de raízes africanas, que ele ouvira ainda na infância. Biógrafo de Vinicius, o jornalista José Castello conta que Baden foi o principal responsável pela introdução da tradição negra na Bossa Nova. Era um novo elemento que apimentava “um movimento talvez açucarado demais, àquela altura, pela melodia inocente de meninos da Zona Sul”. Os Afro Sambas trouxeram novos protagonistas para o repertório bossa-novístico: entram em cena o candomblé e seus orixás e mães-de-santo, a música de capoeira, as conversas ao pé do ouvido, os sambas de roda e maneirismos de fundo de quintal. Era Vinicius transformando-se, conforme sua própria definição, no “branco mais preto do Brasil”. Saravá!
Copacabana
Bar e Restaurante Tudo Azul
Conhecido como o primeiro ou, no mínimo, o segundo melhor piano-bar do Rio de Janeiro – há uma permanente disputa com o Maxim’s – o Tudo Azul era um pequeno bar que ficava atrás do cinema Rian, na Avenida Atlântica, posto 6, em Copacabana. Hoje, no lugar do conjunto todo, está o Hotel Pestana. O Tudo Azul foi um dos primeiros lugares em que Vinicius viu Tom Jobim tocar, antes mesmo de serem oficialmente apresentados na Casa Villarino e depois fechar parceria para Orfeu da Conceição. Mas este lugar ficou marcado, principalmente, como o cenário do nascimento de uma grande paixão do poeta, em uma história que só poderia ter acontecido com ele.
Corria o ano de 1951 e Vinicius ainda estava casado com Beatriz de Mello Moraes, a Tati, com quem o relacionamento estava desgastado. Certa noite, Rubem Braga entra no bar, acompanhado de duas mulheres estonteantes: Danuza Leão, por quem nutria uma paixão nada secreta, e da amiga dela, Lila Bôscoli, irmã de Ronaldo Bôscoli. Para disfarçar a própria ansiedade, ele inverte a situação e encena o papel de Cupido para Lila: “Vai chegar um amigo meu daqui a pouco e vai ser muito chato”, diz para Lila, encarando-a assim que os três sentam à mesa. “Chato por que, se ele é teu amigo?”, indaga ela. “Chato porque eu sou muito amigo da mulher dele, mas sei que vocês dois vão se apaixonar”, rebate Braga. Minutos depois, pede licença às moças e vai até o balcão, onde então telefona para Vinicius e exige sua presença no local. “Quero que você venha ao Tudo Azul agora mesmo”. “Mas por que essa pressa?”, quer saber o poeta. “Não adianta, porque não vou explicar”.
Quando o poeta chega ao bar, Rubem não mede palavras e os apresenta disparando uma frase que se revelaria profética: “Vinicius, esta é Lila Boscoli; Lila, este é Vinicius de Moraes... E seja o que Deus quiser!”. E foi. Nascia ali o terceiro casamento de Vinicius, numa noite em que a conversa se esticaria até cinco horas da manhã. Leitora de poemas, Lila já o tinha como ídolo e ficou surpresa ao conhecer o amigo do qual Braga não revelou o nome nem deu muitos detalhes. “Não posso acreditar... Então o tal amigo é o Vinicius de Moraes?”. Além da poesia, o gosto pela música também os une.
Viveram juntos entre 1951 e 1956 e tiveram duas filhas: Georgiana e Luciana. Nessa fase, o poeta experimenta um novo tipo de paixão e amor extremo. Lila o faz recuperar a força de sua poesia e ele vive um momento muito produtivo.
Restaurante Au Bon Gourmet
Em 1962, o empresário Flávio Ramos comprou, na Praça do Lido, pertinho do Beco das Garrafas, em Copacabana, o restaurante Au Bon Gourmet, que já existia desde 1956 e pertencia ao banqueiro José Fernandes, lenda da noite carioca. Fez uma grande reforma, tirou a decoração com veludos vermelhos e transformou os seus 6x40 m em uma casa de espetáculos com capacidade para trezentas pessoas.
O show de inauguração, denominado “Encontro”, foi simplesmente antológico e reuniu Vinicius de Moraes (que cantou em público pela primeira vez), Tom Jobim e João Gilberto, acompanhados por Os Cariocas e Milton Banana, na bateria. Reza a lenda que se Frank Sinatra – que estava caído de amores pela Bossa Nova – estivesse de passagem pelo Rio, também teria participado. Com direção musical de Aloysio Oliveira, foram apresentadas ao grande público as canções “Garota de Ipanema”, “Só danço samba”, “Samba do avião”, “Samba da bênção” e “O astronauta”. Não se contentando com os seus 45 minutos de duração, havia quem reservasse dois ou três dias na semana para assistir ao show, que ganhou capas de revistas e foi elogiado em diversos jornais da época.
Ramos registrou o primeiro show em fitas, que, por questões contratuais, nunca puderam virar discos, mas muitas versões piratas circularam e ainda circulam por aí. As fitas, segundo o empresário, foram emprestadas a amigos que “sumiram com elas”.
A temporada, cuja duração prevista era de um mês, foi esticada por mais duas semanas, com casa sempre lotada. Sua interrupção ocorreu em função da completa estafa dos músicos e produtores, que se desgastavam diariamente. Marcado para a meia-noite, o espetáculo nunca começava no horário porque, poucos minutos antes, o time estava incompleto. Ruy Castro conta que João Gilberto quase sempre se atrasava. Flávio telefonava desesperado e ele atendia, com voz de quem acabara de acordar: “Mas Flavinho, já está na hora? Espera que eu vou tomar um banhinho e estou indo pra aí”. Em pânico, Flávio pedia: “Não, não, venha! Não saia daí! Tome um banho e fique onde está. O carro está indo para te pegar!”. Com a prática, logo Flávio achou prudente mandar seu Cadillac preto buscar João todos os dias do show, para evitar sobressaltos.
No ano seguinte, o restaurante foi o palco da montagem de “Pobre Menina Rica”, musical de Vinicius e Carlos Lyra, que contava com a presença de ambos e, ainda, Nara Leão, no elenco.
Beco das Garrafas
Foi o jornalista e escritor Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, quem batizou aquela ruela composta por quatro casas noturnas (o Little Club, o Baccarat, o Bottle’s e o Ma Griffe), que desembocavam na Rua Duvivier, bem pertinho da famosa praia de Copacabana. O burburinho gerado pelos shows e a intensa movimentação nas boates durante a madrugada incomodavam os moradores dos prédios vizinhos, que atiravam garrafas na direção do local. Daí o apelido de “Beco das Garrafadas”, que foi reduzido mais tarde para “Beco das Garrafas”.
Pointde intelectuais no final da década de 1950 e começo da de 1960, era o habitat dos nomes mais importantes da Bossa Nova. Hoje o “Beco das Garrafas” abriga uma loja especializada em música e literatura sobre o gênero. Há até um “Museu da Bossa Nova”, que expõe uma edição em vinil de “Canção do amor demais”, entre diversas fotografias de medalhões do porte de João Gilberto, Baden Powell, Tom Jobim e, claro, Vinicius.
Tornou-se famoso e alcançou grande sucesso o show que o poeta fez em 1964, ao lado do compositor e cantor Dorival Caymmi, e do então estreante Quarteto em Cy, na boate Zum-Zum, contígua à Bottle’s. O show teve a produção de Aloysio de Oliveira, que, no ano seguinte, reuniria o conteúdo integral do espetáculo em um LP, pela Elenco, de sua propriedade. O disco resultou no maior êxito comercial da gravadora.
Até hoje, a boemia carioca se ressente pela falta do famoso beco. Tanto que, de vez em quando, alguém ou algum lugar promove uma “Noite do Beco das Garrafas”, para lembrar os lendários pocket-shows. Uma dose de nostalgia.
Ipanema
Bar Garota de Ipanema
Não. “Garota de Ipanema”, o maior sucesso comercial da dupla Vinicius e Tom, não foi composta em uma mesa do antigo bar Veloso, na rua Montenegro – hoje em dia, o Veloso se chama Garota de Ipanema e a rua Montenegro, Vinicius de Moraes. Mas foi de fato lá nesse mesmo local que a dupla viu passar a jovem Helô Pinheiro, a caminho da praia, em 1962. Quem conta a história é o jornalista Ruy Castro, no livro Chega de Saudade: “Acabaram de beber seu uísque, pagaram e cada qual foi para sua casa. Algumas semanas depois, nasceu um samba”. Passaram semanas suando para encaixar a melodia e queimando as pestanas na busca pelas palavras que entrariam nos versos.
A melodia foi feita na nova casa de Tom, na rua Barão da Torre, também em Ipanema. Já Vinicius compôs a letra no apartamento do Parque Guinle e numa casa em Petrópolis, ambos pertencentes à então mulher do poeta, Lúcia Proença. O resto é mito. “Garota” tornou-se uma das músicas mais executadas de todo o planeta, com gravações de intérpretes do calibre de Frank Sinatra, abrindo a porta dos Estados Unidos a Tom Jobim, que recebeu em 1966 o convite, por telefone, para gravar com o “blue eyes”. Do outro lado da linha estava o próprio Sinatra, que disse: “Gostaria de fazer um disco com você e queria saber se está interessado”. “Perfeitamente, é uma honra”, topou de imediato.
A música virou filme – que Vinicius (e todo mundo) detestou –, sem a participação de Helô, que foi barrada pelo pai general e pelo noivo ciumento. O bar, hoje, é atração turística e, além da mesa onde Vinicius e Tom teriam “composto” a música, exibe cópia da partitura devidamente emolduradas, dando a entender que procede mesmo a lenda da composição de “Garota de Ipanema”. Na verdade, não passa de uma ilusão, mas, se como cantou o poetinha, a vida “é uma grande ilusão”, vale o chope no fim de tarde na “mesa mítica”, assistindo ao vai-e-vem das novas garotas de Ipanema.
Casa de Tom Jobim
Uma placa assinada pela Confraria do Copo Furado nos informa que o apartamento onde o maestro Tom Jobim morou, entre os anos de 1954 e 1960, fica em Ipanema, na Rua Nascimento Silva, 107, endereço que abre “Carta Ao Tom”. Foi lá que ele e Vinicius se juntaram para criar o repertório de Orfeu da Conceição e, após algumas tentativas de se entender (jogaram no lixo as três primeiras canções), compuseram seus primeiros sucessos, incluindo obras-primas como “Se todos fossem iguais a você”.
A letra do samba composto por Vinicius e Toquinho e que eternizou aquele pedacinho de Ipanema refere-se ao álbum “Canção do amor demais” (1958), disco que é considerado o marco oficial da Bossa Nova. Gravado na voz de Elizete Cardoso, o álbum teve ainda a participação de João Gilberto no violão, que chama a atenção com sua batida nas faixas “Chega de Saudade” e “Outra vez”.
Anos mais tarde, o ar nostálgico dá espaço a uma dose de ironia, com a paródia composta por Tom e Chico Buarque em cima da mesma melodia de Toquinho. Com bom humor, “Carta do Tom” fala do aumento da violência no bairro, a degradação da natureza, o tamanho reduzido das janelas em função da diminuição do espaço nos apartamentos, a expansão dos edifícios e cita ainda a especulação imobiliária do Rio de Janeiro, simbolizada pelo nome do empresário Sérgio Dourado. Até o amor, que já não tem mais a pretensão de ser eterno, pode ser “loteado”.
As músicas aparecem juntas, no álbum gravado ao vivo no Canecão em 1977, durante um show que reuniu Tom, Vinicius, Toquinho e Miúcha. A direção do espetáculo foi de Aloysio de Oliveira, o mesmo que dirigiu o show “Encontro”, no Au Bon Gourmet.
Frase de Tom: “Normalmente, a gente começava a compor de tarde, nós estávamos ainda na base do café, mas Vinicius não gostava muito de café. Os dois fumávamos aqueles cigarros todos, tragando aquela fumaça na Rua Nascimento Silva, 107. Às quatro e meia, começava a cerveja. Vinicius, ao contrário do que esse pessoal todo diz, tomou muito chope.” Em depoimento para o livro “Tom sobre Tons”.