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A voz incansável que continua a ser uma referência para toda e qualquer geração posterior de cantoras quer mais palco, mais 50 anos de carreira... Quer mais.
É a voz, por óbvio, o fio condutor inquestionável desses cinquenta anos de carreira: o timbre agudo que desafia guitarras, emula instrumentos de sopro; ora rasgada, ora cristalina, sempre potente. Tão marcante que bastam umas poucas e precisas notas para o reconhecimento imediato. Quando um cantar vira impressão digital, é preciso parar para apreciá-lo com atenção. Acontece que, no exercício desse perceber, gritam junto outras nuances. Não é “só” a voz, afinal, que faz com que Maria da Graça seja Gal Costa.
É também a história. A construção desde a barriga da mãe, Mariah, do vínculo com a música – uma gestação repleta de rituais delicados, como a audição de música clássica para desenvolver a sensibilidade, coisa que deu muito certo. É a geografia – Gal é a relevância da arte baiana, um dos cenários mais profícuos da cultura brasileira. É destemor. A carreira erguida em plena ditadura militar, e passando ao largo da caretice. Sisudez, aliás, nunca foi faceta sua. Já houve, e eventualmente ainda há, sobriedade; até mesmo algum recorte sombrio, como em Recanto, seu penúltimo disco. Mas, para os caretas, só mesmo o leite mal escrito por Caetano Veloso em “Vaca Profana”, eternizado em sua interpretação. Gal é solar e vibrante, até no auge de sua densidade.
O mosaico da musa também é feito das boas companhias. Continua acreditando em Deus, gostando de baile e cinema, admirando Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, Macalé, Paulinho da Viola. Mas agora, aos setenta anos, seu “pessoal da pesada” incorporou outros nomes, de uma geração presente e fervilhante: Mallu Magalhães, Céu, Marcelo Camelo, Criolo, Kassin, Pupillo (Nação Zumbi) e Marisa Monte são alguns de seus novos amigos e parceiros. O sopro renovador é bilateral. As ideias efervescentes de tal momento da sonoridade nacional deram ao “Estratosférica”, lançamento mais recente da cantora, uma consistente cama de modernidade – sobre a qual Gal se deitou confortavelmente. Sim, porque Maria da Graça não parou no tempo. E curiosamente, seguiu adiante porque não mudou: veste e despe canções com a mesma convicção e alcance de sempre, inventiva e honesta sobretudo consigo.
Talvez por isso mesmo – mais que voz, história, geografia, destemor e boas companhias – ela é persona. O retrato da mulher empoderada. Dona do canto, do palco, dos seios de fora no emblemático “sorriso do gato de Alice”, da versatilidade, das músicas que ressignifica toda vez que as entoa. Não é de graça que a intérprete é referência para outras tantas mulheres, cantoras, fortes e seguras, que nem mesmo eram nascidas quando o Brasil e Gal se descobriram mutuamente. É ícone. É ainda Fa-Tal, como sempre foi; mas hoje voa tão alto que míopes perigam não ver. É “Estratosférica”, pairando “numa nave colorida de acender”, como canta na faixa-título de seu recente trabalho. E avisa: vai demorar – e muito, tomara – para descer.
Em entrevista exclusiva para a Revista Leal Moreira, Gal Costa comenta a excelente fase da carreira, e deixa entrever sua liberdade e presença forte
habituais. Confira:
Este é um momento diferente na vida pessoal, é uma fase da carreira musical...? O que acontece hoje é melhor do que antes ou só é novo e você está curtindo?
Esta fase é mais uma fase na minha carreira, e é um momento que tem total coerência com tudo que fiz nesses cinquenta anos em que trabalho com música. Melhor, sempre é. Sempre foi. Sempre!
Suas interpretações estão refletindo esse momento, na sua opinião? Como?
Todos os meus trabalhos refletem a minha alma. E isso ocorre em todos os períodos em que os realizei. Sabe por que? Porque o que faço é verdadeiro e com muita paixão.
Você comemorou 50 anos de carreira há pouco tempo, e é impressionante a sua qualidade vocal - assim como o fato de que você não baixa os tons para cantar os sucessos que ficaram imortalizados na sua voz, no registro mais agudo. Fazer isso é algo natural ou te exige uma preparação mais apurada?
Realmente, canto a maioria das canções nos tons originais das minhas gravações. E não faço esforço nenhum! Pra mim é natural, porque mantenho até hoje os agudos que sempre tive; e com o tempo ganhei os graves que antes não tinha.
Falando em qualidade vocal, como você avalia as vozes desse país hoje em dia? Ainda vivemos o rescaldo de uma safra antiga ou temos grandes cantores na contemporaneidade?
Temos grandes vozes sim. Temos bons cantores e boas cantoras. Temos uma geração que se referencia muito no tropicalismo, coisa que acho ótima. [Eles estão se encontrando] nas próprias raízes, mas buscando ser modernos.
Como você está de parceria? De quem é a escrita que te motiva a cantar? Como você juntou essas inspirações no seu álbum mais recente?
“Recanto” foi muito importante para essa guinada recente, e é totalmente coerente com a minha carreira. Quis fazer um disco mais moderno, e linkando tudo com minha história. Construí esse caminho cantando compositores que nunca havia gravado. Trabalhei com Marcus Preto, Moreno Veloso e Kassin. Foi uma parceria maravilhosa.
Qual é o seu barato total hoje? É show? É disco novo? É palco, é cantar? Qual é "o" seu melhor momento quando o assunto é música, aquele que é o favorito?
Gosto muito do palco. Mais do que estúdio, embora também ame gravar. O show… Palco é uma maravilha. É um momento de prazer indescritível.
O que você ainda quer fazer? Temos planos para os próximos 50 anos de carreira?
Quero mais que cinquenta anos (risos)! “Deixa a vida me levar, vida leva eu”!
Cantar o novo ou cantar os grandes sucessos, o que mais te apetece? Causa algum desconforto ouvir o famigerado “canta aquela!” no meio do show? Pedido de fã é uma coisa que você gosta ou já se cansou?
Não tem nada disso. Quando estou no palco e alguém pede uma música, seja qual for, é muito prazeroso cantar.
“Estratosférica” é um título que sugere uma grande amplidão. Você se sente assim? Por que Gal é “Estratosférica”?
“Estratosférica” é a música composta por Pupillo [do Nação Zumbi], Céu e Junio [Barreto]. Ela tem esse nome, e é perfeito para um nome de disco. “Estratosférica” tem um significado amplo, mas também pode ser simples. “Estratosférica, voar”!