Na Avenida Presidente Vargas, quase na esquina da Rua Carlos Gomes, em área mais do que central na capital paraense, espremido entre prédios, um casarão de arquitetura antiga e elegante se destaca sobre as demais construções. A Farmácia República, referência à praça que fica em frente – embora o letreiro antigo ainda mostre “Pharmácia Central” – parece uma resistente da beleza antiga, em contraponto à desordem que tomou o centro de Belém. Tamanho charme parece não ser suficiente para atrair clientes. Há pelo menos dois anos a fachada ostenta uma placa de “aluga-se”.
Detentora de um legado cultural ainda fascinante, remanescente do começo do século passado, quando a cidade vivia o apogeu do Ciclo da Borracha, Belém tem, em sua arquitetura no centro histórico, algumas joias sempre exaltadas por seus moradores e turistas, porém invariavelmente mal cuidadas, sem preservação alguma. O bairro da Cidade Velha é quase todo um exemplo desse descaso a céu aberto. A Pharmácia não se encontra nesse rol, já que sua beleza ainda é, a olhos nus, encantadora. No entanto, é um negócio e, como tal, tem que dar lucro. As prateleiras no magnífico móvel de madeira de lei estão parcialmente vazias, sem aquela variedade de produtos que as grandes redes de farmácia ostentam.
“O prédio é lindo, encantador, mas é um negócio e não temos dado conta. Todas as farmácias de bairro, as tradicionais, sofreram baques por causa das grandes redes. Queria poder não alugar, mas é preciso”. A explicação quase na forma de um lamento é de Isaac Elias Israel, filho de Morse Israel, um ex-funcionário público que, em 1967, realizou o sonho de adquirir o estabelecimento que tantas vezes admirava. Isaac conta que o pai teve de ir à Justiça do Trabalho reaver o móvel principal da farmácia, que ia ser vendido separadamente.
Os estabelecimentos familiares sempre foram tradicionais no surgimento das grandes metrópoles e, além das leis do mercado, obedecem às regras de seu círculo - nesse caso a família, acima de qualquer coisa.
De tudo um pouco
Desde 1906, quando o mascate libanês Salomão Antônio Mufarrej resolveu colocar as mercadorias que vendia em casa em uma lojinha, a Casa Salomão passou a ser uma referência. Localizada na Avenida Magalhães Barata, desde a época em que ainda era ‘Independência’, em frente ao Museu Emilio Goeldi, o estabelecimento é daqueles que já está incrustrado no imaginário da população.
Neto do fundador, Salomão tem a missão de levar adiante , como ele mesmo diz, a “loja de ferragens que tem quase tudo”. São seis mil metros quadrados de tudo um pouco, embora grande parte seja de produtos antigos, muitos dos quais parecem já ter caído em desuso. Dos quatro filhos do fundador, todos de certa forma trabalharam na loja, mas foi Raja, o mais novo, quem ficou mais tempo à frente do estabelecimento. Julieta, também herdeira, está sempre presente no balcão, exercendo o papel de ‘relações públicas’, exalando simpatia. Janete e Davi tomaram rumos diferentes.
De campeã de vendas em vários segmentos - em especial de tintas - a Casa Salomão virou refém dos próprios preceitos rígidos da família. Não é mais uma líder no mercado, mas se mantém. Entre algumas das regras que Raja herdou do pai, estão algumas de quem tem a negociação no sangue: uma é de nunca dar um passo maior que a perna. “A hora que quiser fechar, passo a chave sem dever ninguém”, costuma dizer Raja, sobre a famosa ideia de não se endividar, não procurar empréstimos para passos muito largos.
Outra lei que vigora até hoje na loja cujo slogan é “Tudo para todos em um só lugar” é de não utilizar os meios convencionais de publicidade - jornais, TV, rádio e internet. Em nenhum lugar desses se verá uma propaganda da casa dos Mufarrej. Raja diz que é um caminho sem volta, do qual não se pode sair mais e que a melhor propaganda é o ‘boca a boca’.
O mesmo vale também para o “co-irmão” Mandarim, a loja de ‘também tudo um pouco’ fica em um ponto nobre da Avenida Nazaré, em frente ao Centro Arquitetônico de Nazaré, ao lado do mítico Cine Ópera. Um pouco mais modernizado, em relação ao vizinho de rua, o estabelecimento vende desde a simples linha, passando por fantasias carnavalescas, até brinquedos e roupas. “Às vezes, venho aqui apenas para comprar uns botões, às vezes uma fantasia ou uma peça de pano. É um bom lugar para vir porque é central e tem bastante coisa”, comenta a aposentada Fátima Pantoja, que se diz cliente há anos.
“O boca a boca” pode servir tanto para as lojas já tradicionais em Belém, como as que contabilizam pouco mais de uma década.
Não muito longe da Pharmácia do começo desta matéria, ainda na Avenida Presidente Vargas, o Relicário tem apenas doze anos de funcionamento; entretanto, quem entra no sebo vive uma sensação de clima de anos remotos. Anderson e Edna Sales, que juntos levaram consigo a experiência de terem trabalhado antes em outras livrarias semelhantes, vivem entre livros, revistas, discos e documentos antigos num cenário de poucos metros quadrados que, para os desavisados, pode parecer caótico, mas está dentro da organização deles.
Em dois passos, Anderson chega à prateleira onde está seu item mais antigo, um Relatório do Conselho Municipal de Belém, de 1904 - coletânea com a assinatura do intendente Antônio Lemos. Dois passos adiante, do meio dos quadrinhos embalados em sacos plásticos, Anderson saca um “Heróis da TV”, dos anos oitenta. “Temos entre sete e oito mil produtos à venda, com um público que vai do estudante ao aposentado. É uma relação boa, mesmo com quem entra apenas para dar uma olhada”, conta.
Em um momento em que a propaganda (seja em que meio for ou como for) parece ser o segredo do negócio, esses empreendimentos vão na contramão e parecem não fazer questão de se inserir nesse contexto. De acordo com o publicitário Elizio Eluan, mestre em Ciência da Linguagem, a publicidade é apenas um dos elementos do marketing, importante, mas não é único.
“O marketing é toda a ação ou elemento que junta a vontade do consumidor comprar à fome do vendedor vender”, diz. “O fato de estarem em uma das vias mais importantes de Belém, com um grande fluxo de pedestres da classe C, é um fator muito relevante. O preço é outro fator importante. É uma estratégia que atrai bastante o público a quem se destina. Ainda assim, não estão livres de um dia precisarem de uma mudança de comportamento ou vivenciarem uma grande crise de vendas, o que pode levar esses estabelecimentos a precisar de novas ferramentas de marketing”.
Mesmo fora dos meios tradicionais de publicidade, há o “boca a boca do novo milênio”, que faz uma diferença substancial. “Hoje, existem ótimas alternativas não tradicionais de se expor. Há um boca a boca amplificado por meio do Twitter e Facebook”, explica Eluan, que exemplifica casos em que mídias alternativas fazem diferença. “Existem vários cases competentes de pessoas que confeccionam e vendem biquínis, bonecas, roupas para bebê, dentre tantos outros produtos do gênero, através de blogs e demais redes sociais. Somente com isso e até sem isso é possível sobreviver, dependendo do ramo, dando passos do tamanho das pernas. Agora, se quiser aumentar essas pernas (crescer), deve-se aumentar o tamanho dos passos. A publicidade tradicional é um importante fator para se transformar empresas em fortes marcas. Agrega amplos significados a uma marca, aguça a curiosidade, leva as pessoas a procurarem algo, cria uma ligação emocional entre empresa e cliente. É o que faz a diferença entre os rótulos reconhecidamente preferidos e suas cópias”.
Talvez não seja suficiente para que a Pharmácia República chegue ao seu centenário, em 2013, ainda como o estabelecimento para o qual o prédio foi construído, na segunda década do século passado; ou talvez sim. As redes sociais têm apresentado poder de mobilização que há muito não se via, daí a esperança de que essas “joias” da capital paraense, que precisam do apoio de todos_seja do poder público ou da sociedade civil - venham a ser valorizadas para serem preservadas. Pode até parecer pouco, mas se o boca a boca garante vendas, por que não preservação?
No eixo Rio de Janeiro-São Paulo, há lugares antigos – quase seculares – que também sobrevivem aos anos e à modernidade. A Revista Leal Moreira mostra alguns deles para você.
Salão Phidias
Os espelhos, de cristal belga, estão em perfeito estado. As cadeiras são de fórmica boa, de quase 50 anos atrás. O piso é de pedra portuguesa e não tem uma única rachadura.
Mas não são só as instalações da barbearia Phidias, instalada em uma galeria da rua 24 de Maio, que permanecem iguais há 45 anos. O serviço oferecido também é à moda antiga.
Faz-se a barba seguida de sauna facial. As pias ficam na bancada e permitem que o cliente faça o tradicional mergulho para a frente, diferentemente dos lavatórios modernos. Só a navalha foi aposentada e deu lugar a lâminas descartáveis, conta Luís Antonio da Silva, 54, dono do negócio.
O lugar já teve clientes ilustres, como o presidente Jânio Quadros e os homens da família Safra. Hoje, a maior parte da freguesia é formada por pessoas mais velhas. “Há, inclusive, os que vêm de outras cidades ou até do exterior, garante o proprietário. O arquiteto que projetou o salão também é cliente habitual. Ele vem sempre aqui e fica olhando as maravilhas do passado”, afirma Silva.
A Fidalga
Os provadores da loja de sapatos “A Fidalga” têm um elemento incomum: em volta dos bancos de mogno com veludo azul (a mesma estampa floral há 82 anos), uma proteção esconde a parte de baixo do corpo de quem experimenta os calçados. A herança na arquitetura conservada tem a ver com a época em que a loja foi criada, em 1928. “As mulheres não podiam mostrar as pernas. Os provadores são fechados para que fiquem isolados”, conta Maria Christina Hernandez, proprietária. A loja, inspirada em um comércio de Milão, foi fundada por seu pai, passou para seu irmão e hoje é tocada por ela e a irmã, Thereza Christina.
A sensação de volta no tempo começa pelo edifício “Casa das Arcadas”_ onde fica a loja_ tombado e recém-restaurado. O local também conserva o pé-direito alto, os estoques aparentes e as cadeiras de madeira maciça que os clientes querem até levar para casa. Só as vitrines (antes abertas à visão, mesmo com a loja fechada) tiveram de ser adaptadas aos tempos de insegurança. Hoje, são cobertas à noite por portas de ferro.
O estilo dos sapatos de couro é clássico. “Uma coisa fina, confortável e de qualidade. Como alguns ainda são feitos à mão, é diferente de shopping, onde se encontra mais modinha”, diz Maria Tereza, 33, filha de Maria Christina e gerente da loja.
Thereza Christina conta que o lugar era frequentado pela “nata”. “Era talvez a loja de sapatos mais chique daquela época.” Hoje, há tanto clientes antigos quanto advogados, juízas e passantes mais jovens.
Confeitaria Colombo
De sua inauguração, em 1894, até os dias de hoje, a Confeitaria Colombo conserva intacta sua arquitetura e o modus operandi de seus produtos de pâtisserie. Retrato vivo da Belle Époque carioca e marco da valorização da gastronomia na cidade, a Confeitaria Colombo guarda, ainda hoje, muito do seu estilo Art Nouveau do início do século. Seus famosos espelhos belgas, suas molduras e vitrines em jacarandá, as bancadas de mármore italiano, os lustres, o piso e o belo mobiliário permanecem do mesmo jeito como foram admirados por renomadas personalidades que ajudaram não só a escrever a história do nosso país, como a fazer da Colombo uma das grandes atrações do Rio de Janeiro.
O cardápio inclui basicamente itens de fabricação própria, como pão-de-ló, doce rivadávia, biscoitos Leque, língua recheada e maravilha de camarão, além de uma linha produtos exclusivos que inclui louças, camisetas, aventais, café, pimenta e balas. Para expor alguns desses produtos e exibir o acervo de peças antigas, a casa conta também com o Espaço Memória, que funciona como uma mistura de museu e show room no segundo piso.