Que cachaça é diferente de água, já que uma vem do alambique e a outra vem do ribeirão, isso a gente já sabe desde os primeiros ‘bailinhos’ infantis de carnaval, quando uma marchinha que cantava, e canta até hoje, essa distinção quase que em forma de alerta bateu nos ouvidos pela primeira vez. O que muita gente ainda não sabe é que a cachaça,, assim como o vinho e a cerveja, há tempos deixou de ser apreciada apenas pelos que gostam de uma mesa de bar. Quem se dedica a conhecer a fundo as propriedades de uma bebida tipicamente e legalmente - sim, existe uma legislação, de 2001, que determina o uso do termo “cachaça” apenas para produtores brasileiros, e sob alguns condicionantes – ‘canarinha’ garante que se trata de uma legítima representante da nossa cultura, e que a ideia de ser uma coisa de “bebum” ficou para trás. “É como a feijoada ou o futebol”, afirma Leodoro Porto, 45 anos, o criador da ovacionada e paraensíssima “Cachaça de Jambu”.
Assim como a cachaça mudou a vida do Leo, que se autointitula “o alquimista da cachaça”, mudou também a vida do paulista Leandro Batista, de 34 anos, hoje uma autoridade no assunto, um sommelier. O vício do pai em álcool fez com que ele, desde muito cedo, mantivesse uma distância segura de bebidas, mas sem muito radicalismo. “Meu primeiro contato com o álcool foi aos 14 anos. Bebia, mas sempre me policiando para não me entregar. Engraçado é que, quando saía com os amigos para beber, eu sempre escolhia a cachaça. Mas essa história de que é coisa de drogado e tal é errada e eu faço questão de dizer isso sempre quando faço as degustações, as consultorias. Se a pessoa fica embriagada com três doses, então para na segunda, ou mesmo na primeira. O lance é não se deixar dominar. Eu tenho a experiência na família e levo essa vivência como base”, garante. “Não é ‘ah, perdi o emprego’ e sentar no bar e pedir uma dose atrás da outra até ficar bêbado. É uma bebida de apelo sensorial, que varia muito de gosto pela variedade de madeiras usadas para envelhecê-las. Hoje em dia, é quase impossível uma pessoa dizer que não gosta de cachaça, com certeza existe alguma que vai agradar até o paladar mais exigente. A ideia é beber qualidade, e não quantidade”, afirma.
Estudioso do tema há oito anos, Leandro trabalhava como garçom no Mocotó, restaurante e cachaçaria em SP, no início dos anos 2000, e um belo dia, pediu ao dono para arrumar a carta de cachaças da casa, que estava bagunçada. “Ele gostou, me parabenizou, e logo me deu a responsabilidade de abastecer o estoque do restaurante. Comecei a estudar e a variedade me chamou muito a atenção, as madeiras utilizadas no envelhecimento são todas brasileiras, só a cachaça tem essa variedade toda! Fiz cursos e, depois de um tempo, só entrava cachaça nova no restaurante depois de passar pela análise química, só a história de como ela foi criada não era mais o suficiente para mim. Fazendo isso, eu queria que o consumidor se tornasse mais exigente em relação à qualidade na hora de pedir para degustar alguma das mais de 300 que tínhamos à disposição”, justifica ele, que vê a bebida ganhando um certo requinte, apesar de um histórico longo de marginalização. “Eu lido com público o tempo todo e vejo que o consumo por parte de mulheres, de pessoas de classe média alta, aumentou. Eu vejo que a cachaça ainda é marginalizada pela reação das pessoas quando eu começo a falar sobre as propriedades, variedades. Não faço apologia, mas mostro que é uma bebida que merece todo o reconhecimento, que não é só uma bebida da época dos escravos. E, quando eu consigo passar isso, quando vejo as pessoas interessadas em degustar, em reconhecer a qualidade, é fantástico”, declara o sommelier.
Há menos de um ano, Leandro assumiu a gerência de outro restaurante, especializado em comida nordestina, e cachaçaria, o Barnabé, também em São Paulo, onde entrou para reformular a carta de cachaças. “Eram 200, agora são só 123. Priorizei a qualidade. Fiz do cardápio uma cartilha que o cliente pode levar para ler sobre a história de cada cachaça que oferecemos e, lendo-a, ele fica sabendo, por exemplo, que as peculiaridades de cada região influenciam diretamente no sabor da cachaça, é como faz a uva com o vinho: dependendo de onde ela é cultivada, muda gosto, aroma, tudo”, enumera. “Parar de estudar não está nos meus planos, até porque quero expandir a minha atuação, mas sem deixar de trabalhar em restaurante, diretamente com o público. É preciso mostrar que temos um produto nosso e de muita qualidade. A Diageo, que é a maior distribuidora de bebidas do mundo, comprou a Ypióca. A Nega Fulô também está com eles. Quem diria, né? Afinal, ninguém dá nada para a Ypióca... A Campari comprou a Sagatiba, e aí? Precisa ser que nem o café, que só valorizam quando vem alguém de fora e compra?”, ironiza.