Especial
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Impressionante pelas dimensões e pela suntuosidade, o Centro Cultural Néstor Kirchner, inaugurado em maio deste ano, é um convite à parte da história presente e passada da capital argentina.
Outra mais dentre as mil e uma alternativas culturais na capital argentina impressiona pelas suas dimensões, pela sua beleza arquitetônica e pelas possibilidades de uso que oferece gratuitamente a públicos de todas as idades. E não é shopping center. Construído a partir de 1889 para sediar a empresa pública de Correios e Telégrafos do país, o atual Centro Cultural Néstor Kirchner (CCK) ainda é observado com encantamento pelos primeiros visitantes, não raro muitos deles antigos funcionários da empresa que foi privatizada e desempregou milhares de trabalhadores. Especialistas da Arquitetura, Engenharia e Cultura consideram que é o maior espaço cultural do continente e o quarto maior do mundo, no alto de seus 100 mil metros quadrados. Seriam 40 teatros da Paz, que tem pouco mais de 2.500 metros quadrados.
Do lado de fora, o prédio é de um neoclassicismo majestoso, que sofreu uma única interferência desde 2008, quando as empresas executoras da obra foram licitadas, até a data de sua inauguração, em 25 de maio de 2015: a inclusão do nome do centro cultural, mas de uma maneira totalmente integrada à estrutura, como se fizesse parte da primeira obra entregue em 1928. A cúpula ganhou o brilho azul das luzes que foram instaladas pelo lado de dentro do prédio e que pode reproduzir as cores da bandeira de vários países, para o caso de uma homenagem de ocasião. Para quem não tem o costume de visitar prédios suntuosos, entrar no CCK exige o esforço de vencer a sensação de que “este lugar não é pra mim”.
O material que reveste toda a fachada, chamado “simil piedra” (semelhante a pedra), também está muito presente na área interior do centro cultural, declarado Monumento Histórico Nacional em 2007. Os engenheiros Alejandro Sanchez e Ariel Bevilacqua, das duas empresas que atuam na execução da obra, garantem que este é o material principal presente na área histórica do CCK. “Não se usa mais para construções, apenas para restauração, por economia de tempo e dinheiro. Mas nenhum outro material é mais bonito”, declara Alejandro.
O edifício sofreu outras intervenções no decorrer de sua vida útil e os visitantes podem observar esse detalhe nas pequenas brechas que foram deixadas propositalmente nas paredes, onde se nota as diferentes camadas de pintura que foram superpostas ao longo dos séculos. Foram mantidas em cada sala as cores mais originais possíveis, como em uma antiga sala de despachos da então primeira-dama Eva Perón, que criou uma fundação de assistência social.
De baixo pra cima, de um lado a outro, de ponta a ponta... por onde se observe a imagem é de que as pessoas são pequenininhas, tamanho são os salões das áreas nobres, como o Salão dos Escudos que representam cada província argentina. Os salões nos levam a outras salas, onde estão mantidos os móveis de época. “Quanta durabilidade!”, se escuta entre os visitantes. Inclusive porque o prédio ficou subutilizado depois que os meios de comunicação ganharam outras ferramentas e o sistema de correspondências mudou de perfil.
E os pisos? Algumas pessoas sussurram que deveriam usar pantufas para não maltratar tanta beleza que exibem as madeiras em “cedro roble” e “pinotea”. Parte deles precisou ser trocada e foram utilizados os correspondentes que estavam sem aproveitamento em outro setor do prédio - uma espécie de auto-sustentabilidade. Mas também estão ali debaixo dos pés mármores, granitos, cerâmicas...
“Nos últimos 15, 20 anos, surgiram empresas dedicadas à fabricação de elementos para restauração conservativa. Então grande parte de nossas necessidades
foi resolvida no próprio país, que também é dotado de profissionais muito qualificados”, ressalta Ariel.
Os corredores que circundam o prédio internamente em todos os andares oferecem vistas atrativas aos visitantes, que apreciam longa e silenciosamente os vitrais multicoloridos, com motivos florais e geométricos. Desses vitrais que também decoram igrejas e bendizem as famílias que doaram o mimo.
A área mais contemplativa do prédio inclui ainda um subsolo que comporta o Museu do Correio, onde as pessoas encontram um grande móvel de antigas caixas privadas de correspondências, todas douradas. No topo, sob a égide da cúpula, um salão para eventos com duas entradas para os terraços com ampla vista tanto para a zona de Porto Madeiro e o Rio de la Plata, quanto para prédios públicos e área mais comercial de Buenos Aires. São os primeiros da cidade.
A modernidade pulsante
Como se alguém ultrapassasse um portal sem barreiras é possível dar de encontro com a construção moderna do CCK. Esse traslado do passado para o futuro se nota não apenas no que se refere aos materiais presentes, mas à oferta de serviços e ao burburinho que provocam os visitantes. As opções são prioritariamente musicais, desde salas de menor porte até a principal, batizada de Baleia Azul, com capacidade para quase duas mil pessoas.
Esse foi o projeto mais difícil de executar, segundo os engenheiros, porque teriam de promover profundas intervenções sem causar nenhum dano à parte histórica do prédio. Uma série de torres enjaulou a construção por dentro para dar maior proteção. E a Baleia Azul foi um desafio tão grande quanto ela mesma. “O prédio tem três andares subterrâneos. De pronto encontramos água, por conta da geologia local. Tudo muito inóspito”, descreve Alejandro.
Desde os primeiros dias de trabalho, músicos da Orquestra Sinfônica Nacional estavam presentes, para garantir uma perfeita acústica. Calçar a Baleia com três patas, por exemplo, contribui para que não haja interferência dos sons externos ao próprio prédio, como os dos metrôs subterrâneos ou das vias ao redor. “Temos ali dentro um órgão de 3.500 tubos que pesa 30 toneladas. Realmente foi tudo muito novo. Não há manual que nos guie numa obra desta escala. E ouvir elogio de quem agora se beneficia dele nos dá muito orgulho”, reconhece Alejandro.
No que seria a pele da Baleia, se pode ver uma série de projeções de imagens. E acima dela, mais um salão aberto, com possibilidade de espetáculos musicais ou teatrais. Um ambiente sedutor especialmente para crianças. No alto, vê-se a Grande Lâmpada, uma peça quase translúcida que lembra gigantes cubos de gelo pendurados sem que se note como.
Abaixo da Baleia está outro espaço para exposições e de onde se pode alcançar o salão de entrada do prédio, sempre ocupado com intervenções artísticas. Atores oferecem leitura de segredos que chegam aos ouvidos por meio de um comprido tubo de papelão. Leitura também está disponível em salas de exposição, onde se guardam cartas de ilustres como de René Favaloro, mundialmente reconhecido por suas contribuições e descobertas na área de cirurgia cardíaca, e do guerrilheiro Che Guevara, um ícone para revolucionários de diversos países. Há quem saia triste, há quem saia esperançoso, depende de que médico seja o autor dos depoimentos registrados na carta.
A definição de Nicolas Bares, um dos arquitetos selecionados para a missão, é bem apropriada: o velho Correio se converteu em um espaço ativo, permeável e vibrante, em um edifício-cidade. Ninguém perde a viagem se não conseguir entradas para algum programa específico. O Centro Cultural Kirchner, de fato, é um lugar de convivência e contemplação.