Especial
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Um simples piscar de olhos é capaz de transportá-lo para dentro da quadra, a alguns meses no futuro, quando a pira olímpica flamejará com muito mais intensidade. É o poder da obsessão que acomete um homem de família, de hábitos simples e voz calma, mas que transparece uma constante preocupação capaz de lhe tirar o privilégio de uma boa noite de sono. Conversar com José Roberto Guimarães é ter os Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, sempre em foco. Por mais que outro assunto seja levantado, é certo que ele irá desaguar na preparação da seleção brasileira feminina de vôlei para a competição. E não tem como ser diferente, já que ele respira o voleibol desde criança e a Olimpíada é considerada o ápice esportivo mundial.
Pode soar até estranho que um profissional com a experiência de Guimarães, que já ganhou tudo o que se possa imaginar no voleibol, fique genuinamente nervoso com a proximidade de uma disputa. Mas se ele é uma lenda do esporte, é justamente por causa da sua dedicação e de como enxerga o jogo, respeitando-o e sentindo-se honrado em fazer parte dele. “Eu levo ser técnico da seleção brasileira como uma missão. Eu vivi os dois lados. Ou seja, no momento em que o Brasil estava aprendendo com as grandes potências, lembro das dificuldades que enfrentávamos nesse período e que serviram para mim como uma grande escola. E aí a gente começou a fazer alguns resultados. O Brasil foi crescendo, se encontrando mais entre os melhores times do mundo. E aí vem a missão, o fato de ser o técnico da seleção, contribuir, ensinar... Eu acho que isso é sempre um grande desafio”, afirma.
E de desafios foi feita a carreira de José Roberto Guimarães. Desde cedo. Ao optar pelo vôlei, aos 13 anos de idade, estava indo duplamente de encontro à ordem natural que se estabelecia dentro da própria casa. Primeiro porque o pai era jogador de futebol – o que no Brasil seria um motivo a mais paramilhares de meninos, que praticamente nascem com esse sonho de seguir pelo mesmo caminho. Mas não era só isso. O vôlei logo se mostrou a ele muito mais do que um lazer e, pela lógica, estudar Educação Física era o passo seguinte. “Meus pais queriam que eu fosse médico ou engenheiro. E eu já vislumbrava uma carreira dentro do esporte e uma situação diferente em termos da busca pela qualidade de vida. Quando minha mãe dizia: ‘meu filho, mas você vai ser professor de Educação Física...’, eu respondia: ‘mãe, hoje pouca gente valoriza a Educação Física, mas no futuro ela vai ser muito valorizada porque as pessoas vão entender o cuidado que elas vão ter que ter com a saúde’”, lembra Guimarães.
Se a transição do jogador de vôlei para o técnico, aos 34 anos, foi tranquila do ponto de vista conceitual, do que ele queria para a sua vida, o mesmo não se pode dizer do lado financeiro dessa escolha, já que era preciso se capacitar, investir na carreira. Um aprendizado constante que pedia estudos com técnicos estrangeiros e tempos fora do país, afastando-o obrigatoriamente da família, cujo apoio nunca lhe faltou – o que faz com que ele, sempre que pode, se volte aos seus, seja para um cinema ou um teatro, o que, afirma, consegue deixar-lhe mais calmo e tranquilo.
Contudo, foi um sacrifício necessário e que o tempo provou ter valido a pena. As três medalhas de ouro olímpicas conquistadas por ele, entre outros títulos importantes, estão aí para não deixar nenhuma dúvida. Vale lembrar que José Roberto é o único técnico vencedor das Olimpíadas tanto com o time masculino quanto o feminino. Uma façanha, levando-se em consideração as diferenças entre os métodos de trabalho e de relacionamento existentes entre homens e mulheres.
“É completamente diferente. O masculino você busca precisão, mas também muita velocidade, força e potência nos fundamentos, principalmente no ataque e no saque; no feminino, você busca muita técnica. Por quê? Porque tem ralis maiores. A bola fica muito mais tempo em jogo, as jogadoras tocam mais na bola, consequentemente elas têm que aprimorar muito a parte técnica pela quantidade de movimentos que elas vão executar”, explica ele, que não se esquiva em afirmar que trabalhar com a seleção masculina é bem mais fácil. “Os homens são mais diretos, quando não gostam de alguma coisa vão logo ao assunto, esclarecer as coisas. Com as mulheres você tem que entender muito nas entrelinhas, você tem a situação da vaidade, do ciúme, da TPM, mudanças hormonais. Tudo isso interfere”.
Ter em mente as peculiaridades femininas está entre as atribuições do técnico, sendo inclusive parte fundamental do seu planejamento. “Antigamente, a gente mapeava o ciclo menstrual das jogadoras para tentar que o campeonato não caísse na época de TPM e da menstruação. Em algumas não acontece absolutamente nada, mas outras sofrem. Tem que ter um cuidado muito grande com o corpo da mulher, cuidados ginecológicos e endocrinológicos. Porque a gente fala de performance. Para ter uma performance adequada, teu corpo tem que responder. Para ele responder, qual é o metabolismo que ele está? Como estão os hormônios?”, comenta, ciente da responsabilidade. “A gente tem que guiar com muita lucidez, esmero. É muito sutil”.
Essa é a rotina árdua, de concentração e monitoramento constante, pertencente a José Roberto desde 2003, quando assumiu o comando da seleção feminina. Ao todo, são quatro ciclos olímpicos (Atenas, Pequim, Londres e agora o Rio de Janeiro) em que gerações de atletas passaram pela sua tutela. Algo que vê como gratificante, apesar da imensa carga sobre os seus ombros. “São histórias que a gente escreve. A gente monitora o Brasil e o mundo do vôlei. E tem que estar aberto ao surgimento de novas jogadoras, jovens, talentosas, que tenham o biótipo ideal para poder iniciar um trabalho”, esclarece, ressaltando que esse trabalho é ininterrupto, por isso ele não consegue se desvencilhar do cargo mesmo nos momentos em que não está com a seleção brasileira. Ainda mais com a Olimpíada batendo à porta...
“Eu estou obcecado, pois faltam 252 dias para o começo dos Jogos [à época desta entrevista]. Então a comissão técnica tenta monitorar as jogadoras que a gente já tem uma ideia de que possam jogar a Olimpíada. É uma preocupação com a parte técnica e com a parte física, principalmente, porque a gente vai ter pouco tempo para trabalhar”, diz ele, lembrando que as atletas terão campeonatos a disputar pelos seus clubes até abril do próximo ano, que é quando está previsto o começo da preparação específica do Brasil para os Jogos. “Elas têm que chegar bem fisicamente, porque não dá tempo para botar ninguém em forma em três meses. Têm que vir com lastro para dar sequência no trabalho, para poder trabalhar também o lado psicológico de um time que vai jogar a Olimpíada em casa, com responsabilidade de ser o atual bicampeão”, continua, preocupado. “Tô ansioso, dormindo pouco, pois tô longe delas, distante. Eu falo, mando mensagem... Se a Olimpíada fosse hoje, nós teríamos sérios problemas. As coisas não estão encaixadas, mas ainda tem tempo hábil”, afirma, citando os casos de Sheila, que não é titular em seu time na Turquia; de Thaísa, que ficou cinco meses se recuperando de uma cirurgia nos dois joelhos; Fernanda Garay, que estava parada, sem time, e só agora acertou contrato com o Dínamo de Moscou; além de Fabíola, que engravidou e ele vê como remotas as chances de ela ir aos Jogos.
Apesar de todos esses problemas, José Roberto Guimarães está otimista. Já garantido na disputa pelo fato de o Brasil ser o país sede, ele espera pela definição dos concorrentes à medalha de ouro. Até agora, apenas Sérvia e China estão classificadas. Duas das seleções que ele considera favoritas, junto com Estados Unidos e Rússia, que ainda estão na busca por uma vaga naquela que, ele acredita, será uma das melhores Olimpíadas de todos os tempos, seja em relação à competitividade seja em relação ao evento em si. “Talvez a gente consiga fazer uma Olímpiada muito comparada à melhor das seis a que fui: Barcelona, que para mim foi hours concours em todos os sentidos, atmosfera, beleza da cidade, organização, amabilidade das pessoas... Confio muito na nossa gente, no nosso povo, acho que quando a gente se coloca para fazer um evento, faz da melhor maneira possível, não perde para ninguém, é exemplo no mundo”, diz.
José Roberto Guimarães vai além e afirma que os Jogos do próximo ano serão decisivos para o futuro do esporte no Brasil. “Para o Rio vai ser muito bom, a gente vai deixar um legado de instalações. Para a nossa juventude também, pois ela vai poder ver os melhores atletas do mundo, vai sonhar em um dia estar ali, representando o nosso país, que é a coisa mais vigorosa e gostosa do mundo. Acho que a Olimpíada no Brasil vai despertar nessa geração essa vontade, o orgulho de querer representar o país”. Que assim seja!