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O pequeno Pablo Ruiz Picasso tinha apenas sete anos quando começou a desenhar. Apoiado pelo pai, que além de pintor era professor de desenho e curador do museu da pequena Málaga, a cidade no sul da Espanha onde o menino nasceu, ele observava a natureza e logo ia passando para o papel as suas primeiras impressões do mundo. A mãe e os primos do garoto também o apoiavam, propondo diferentes desafios para o futuro artista: “Pablo, desenhe isso!”, apontava um dos primos na direção de um animal que estava por perto. “Comece desenhando pela orelha”. “Agora, comece pela pata dianteira”. O jogo continuava com eles mudando o animal e o ponto de partida do desenho. E no fim, todos ficavam fascinados com sua capacidade para representar absolutamente tudo o que via.
Na adolescência, ele já conseguia fazer com lápis ou tinta desenhos e pinturas com o mesmo nível de qualidade alcançado pelo pai ou qualquer outro professor de arte de toda a Espanha. Certa vez, ao recordar como a família se orgulhava de seu talento, Picasso revelou que um dia seu pai simplesmente abandonou a pintura. “Ele me deu seus pincéis e suas tintas e nunca mais quis pintar”. É famosa a frase em que Picasso calcula ter demorado quatro anos para desenhar como o mestre renascentista Raphael “e uma vida inteira para pintar como uma criança”. Isso porque, a partir de sua maturidade até seus últimos dias, Picasso se esforçou para desconstruir aquela maneira formal como aprendera a desenhar.
Ao longo desse processo de desconstrução em sua extensa e prolífica carreira artística, que durou mais de 75 anos, ele passeou por diferentes estilos – alguns inventados por ele mesmo – e criou milhares de obras. Não apenas pinturas, como também esculturas, gravuras, colagens e cerâmicas, utilizando os mais diversos tipos de materiais: de jornais a máscaras de tribos africanas. Viveu 91 anos e, sem exageros, é considerado o artista mais importante do século XX. Por essas e outras razões, já foi dito que Pablo Picasso criou a Arte Moderna, praticamente sozinho. Não é pouca coisa.
Mas é justamente sobre essa aura mítica em torno do artista de mil facetas, que tenta lançar luz a exposição “Picasso e a Modernidade Espanhola”, da coleção do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de Madri. Com cerca de 90 obras de artistas espanhóis, todas do período do modernismo e com destaque para trabalhos do maior nome do estilo Cubista, a exposição posiciona a obra de Picasso entre os anos de 1910 e 1963 para esmiuçar os contextos históricos, artísticos e sociais em que foram criadas, removendo o artista daquela posição entre o heroico e o lendário para situá-lo em um novo espaço, de inter-relação com outros criadores espanhóis do mesmo período.
Após sua exibição no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo, a mostra segue para a sede do CCBB do Rio de Janeiro, onde poderá ser vista entre 24 de junho e 7 de setembro. A curadoria é de Eugenio Carmona, professor de História da Arte da Universidade de Málaga e conceituado especialista no tema. Em entrevista a um programa de televisão de um canal por assinatura no Brasil, ele destacou que a dualidade de Picasso é um dos fatores mais importantes para a compreensão do sentido de modernidade em sua obra.
“O sentido de modernidade tem a ver com unidade de variação, com citar a si mesmo, com evocar os mestres do passado e ter um museu dentro da própria cabeça... Picasso acabou sendo visto como um artista pós-moderno ou até mais que isso: um autor de transição entre o passado e o futuro. Alguém que foi capaz de modificar as linguagens artísticas profundamente, mas ao mesmo tempo, citar Velázquez, Rembrandt, Ingres, a arte clássica. Ele lembra a obra dos mestres e os traduz para a modernidade. Essa dualidade faz parte do sentido de moderno dele”.
A mostra apresenta os diálogos, as relações e os desafios que são estabelecidos entre Picasso e outros artistas modernos espanhóis, entre os quais estão nomes como Salvador Dalí, Julio González, Eduardo Chillida, Martín Chirino e Pancho Cossío. Entre as pinturas, esculturas, desenhos e gravuras também destacam-se as obras Siurana, el Camino, de Juan Miró; El Violín, de Juan Gris e Composición Cósmica, de Óscar Domínguez. Ainda segundo o curador, Picasso foi uma referência para todos os artistas espanhóis que aspiravam transformar a arte no sentido da modernidade. “É um erro pensar que ele é o mestre dos maiores artistas espanhóis modernos. Não é bem assim. Os artistas espanhóis modernos olhavam para Picasso porque ele era uma referência internacional: todos os artistas do mundo também olhavam para Picasso. Mas isso não quer dizer que esses mesmos artistas não acabaram encontrando suas próprias linguagens e criando as suas propostas”.
Essa relação de mútua influência artística aconteceu entre ele e o catalão Joan Miró: “Há momentos em que a obra de Picasso influencia a de Miró. Há momentos em que a obra de Miró demarca um caminho em Picasso... Até que chega o momento de uma relação absoluta entre ambos”. Carmona defende que é possível estabelecer também um paralelo entre a obra de Picasso e a de Salvador Dalí, mas por outra perspectiva, já que este último fez o que ele classifica como uma espécie de apropriação. Embora ainda na juventude, até desenvolver sua própria abordagem, tenha tentado imitar os estilos clássico e cubista de Picasso (acrescentando, porém, um conteúdo psicológico às interpretações das obras), o surrealista não despertou muito o interesse do malaguenho. “Nunca entre eles houve uma relação, mas em minha opinião, Picasso assimilou muitos dos componentes da imagem dúbia que, mais tarde, Dalí viria teorizar”, pondera o curador.
Dividida em oito salas, a exposição aborda em “Picasso: O trabalho do artista” e “Picasso: Variações” a relação do artista com a modernidade e sua diversidade criativa. Entre as obras com a assinatura de Picasso estão Cabeça de Mulher (1910), Busto e Paleta (1932), Retrato de Dora Maar (1939) e O Pintor e a Modelo (1963). Além disso, são apresentadas obras que unem “Ideia e forma”, “Signo, superfície, espaço”, “Realidade e super-realidade” e “Natureza e cultura”. Nos outros espaços é mostrada de forma transversal a relação do pintor malaguenho com os demais modernistas espanhóis.
Um módulo especial é dedicado a um mergulho no imaginário de Picasso, com estudos e esboços para Guernica, que ajudam a compreender como ele concebeu a iconografia desta que é uma das mais impactantes obras de arte de todos os tempos. Criada como uma reação imediata ao bombardeio nazista que, durante a Guerra Civil Espanhola, matou mais de 100 civis na pequena cidade que dá nome à pintura, Guernica é um pungente e atemporal manifesto em favor da paz.
Por dentro da mente de Picasso: considerada a obra-prima do pintor, que lhe conferiu fama global, Guernica retrata os horrores da guerra civil após o bombardeio da pequena cidade de mesmo nome no País Basco, em 1937. Na mostra, é possível acompanhar o processo de evolução criativa dos personagens que compõem esse mural, por meio de diversos estudos preliminares e esboços executados pelo artista espanhol.
Cubismo: o mais revolucionário de todos os Picassos
Ao lado do amigo Georges Braque, Picasso desenvolveu um novo estilo para a pintura a partir do princípio de Paul Cézanne, que ele declarou ser o seu maior mestre. O exercício consistia em reduzir o mundo visual às formas básicas. Explorando esse recurso, a dupla analisava cuidadosamente o objeto antes de retratá-lo, tentando descobrir facetas e planos que sugerissem sua estrutura interna. Além da ênfase às formas básicas (quadrados, retângulos, triângulos, cilindros etc.), também retrataram as coisas de vários ângulos ao mesmo tempo.
Ao observar a obra de Braque, um amigo escritor teve a impressão de que tudo ali se mostrava como “cubos”, intitulando o novo estilo de “Cubismo”. Não tardaria até que outros artistas adotassem a mesma maneira de pintar, tornando o estilo popular em diversos países do mundo. Com suas novas propostas de perspectivas para fundo e figura, espaço e objeto, aquela nova forma de pintar estabeleceria uma mudança absoluta na arte. O Cubismo se constitui apenas como uma das muitas maneiras de pintar usadas por Picasso, mas foi certamente a mais revolucionária delas.
Não por acaso, o ponto de partida da exposição é o início de 1910, considerado momento-chave do amadurecimento das poéticas do Cubismo e de sua proposta de reordenação do olhar moderno. “O estudo da forma, a possibilidade de uma pintura de caráter analítico, se opõe a antigas concepções essencialistas que associavam a sensibilidade artística espanhola a certa tendência dionisíaca, dramática ou carnavalesca”, pontua Manuel Borja-Villel, diretor do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.
Picasso trabalhou em diversos estilos, mas foi especialmente no Cubismo que inventou novas maneiras de representar as coisas. Mostrou objetos simultaneamente de vários ângulos, combinando muitas vezes uma vista de frente com outra de perfil. As formas angulares e as cores exageradas e distorcidas de suas telas são capazes de transmitir as emoções mais pungentes. Com isso, sua obra conferiu não apenas uma nova importância aos sentimentos pessoais, às pequenas coisas da vida que nos cercam, como também uma nova dimensão aos grandes acontecimentos de sua época.