Radiante: esta é Lia Sophia. O sorriso fácil e o brilho nos olhos são fruto, em parte, do bom momento que a cantora vive – seu quarto disco acaba de ser lançado, em meio a muita expectativa, inclusive de um mercado pouco acessível à sonoridade nortista até pouco tempo atrás. A outra parte dessa felicidade se deve à consciência do trajeto percorrido. Talentosa e com uma carreira consistente, Lia sabe que foi longo o caminho antes de ela se tornar um dos nomes mais fortes da música paraense atual e ganhar lugar garantido no cenário nacional de grandes cantoras. Num passado nem tão distante, a artista passou por experiências pouco convencionais: foi frentista de posto, vendedora de enciclopédia e graduou-se em psicologia. O chamado da música não tardou a soar, e ela emplacou no circuito boêmio da capital paraense como uma artista pop.
Passam anos e surge, não sem certa surpresa, uma Lia redesenhada. É outra sonoridade, outro ritmo, embora ainda seja perceptível a atmosfera que a tornou celebrada na cena musical de Belém. A voz rouca da cantora agora se combina não a violões, mas aos batuques de um carimbó moderno – onipresente nas rádios e na televisão. As outras faixas de seu novo disco obedecem à mesma estética, um inteligente ponto equidistante entre o regional e o universal. A consequência disso é cair nas graças do público e da crítica; dos bailes tropicais e das festas cults do Centro-Sul. Mais uma vez, sorrisos – pela própria persistência e pelas escolhas acertadas na vida e no trabalho. Nascida na Guiana Francesa e criada em Macapá, Lia Sophia não hesita em se considerar paraense: a cultura local é a dona de seu coração, o que se percebe cada vez mais em seu trabalho. Se mostrando plena e muito feliz, ela vai vivendo um dia de cada vez e festejando. Cheia de determinação e histórias para contar, a cantora fala de sua trajetória e do momento vibrante de sua carreira.
Como a música entrou na tua vida?
O meu primeiro contato com música foi com uns seis anos de idade, e isso foi em uma igreja evangélica em Macapá, onde tinha um coral de crianças. Eu cantava nesse coral e também fazia dupla com o meu irmão. Minha segunda lembrança é de quando eu tinha nove anos, e minha mãe me deu meu primeiro violão. Eu me lembro de ter ficado muito decepcionada com aquele presente. Eu queria uma boneca, uma bicicleta... Não queria aquele violão que eu nem sabia tocar.
E quando tu começaste a gostar daquele violão?
Foi uma obrigação. Minha mãe me deu a missão de aprender a tocar. Eu ficava com raiva do violão, porque ele machucava os dedos. Até que eu aprendi a tocar uma musiquinha – “Pobre Menina”, da dupla Leno e Lilian – e minha mãe sempre me chamava pra tocar para as visitas. Isso começou a me empolgar, e comecei a gostar de tocar violão, de ver que eu era capaz de seduzir as pessoas com aquilo. Criei uma paixão tão grande pelo violão, que eu dormia com ele.
E depois? Decidiste logo que querias ser cantora?
Até meus 17 anos, ser cantora era a última coisa que eu queria na minha vida. Isso não foi colocado pra mim como uma coisa legal. Meus pais eram contra. Então foi muito ruim pra mim quando, com 16 anos, eu vim pra Belém fazer faculdade [Lia é formada em Psicologia pela Universidade Federal do Pará]. Morávamos só eu e meu irmão aqui, e meu pai tinha dificuldades de mandar dinheiro. Então surgiu a necessidade de trabalhar. Mas o que eu sabia fazer? Nada. Só sabia tocar violão e cantar.
Aí começaste a cantar na noite?
Não. Antes de aceitar que eu podia fazer isso pra ganhar dinheiro, eu fui ser frentista em um posto. Eu ganhava sessenta reais por mês. Consegui trabalhar três meses lá e depois não aguentei mais. Depois disso eu fui tentar vender enciclopédia, mas ganhava uma mixaria. Então eu abri um barzinho, o “Carpe Diem”, e comecei a tocar lá para os meus amigos. Daí em diante, não parei mais. As pessoas começaram a me ver e surgiram os convites pra tocar em outros lugares. O primeiro lugar que ganhei cachê como artista era um bordel. Eu ganhava lá cinquenta reais por duas horas de música. Em comparação, era uma grana maravilhosa. E ter liberdade financeira e ainda ser elogiada, encantar as pessoas por isso, começou a me dar certo prazer.
Nessa época já começaste a compor?
Teve um momento importante nos meus 16 anos, em Belém. Uma amiga me apresentou dois CDs que eu não conhecia, de dois grandes artistas de cuja existência eu não sabia, e que hoje têm uma importância muito grande na minha história musical: João Gilberto e Marisa Monte. Isso mudou tudo na minha vida, no meu olhar em relação à música. Marisa Monte era compositora, e eu senti que também podia fazer isso. Comecei a compor as minhas coisas e a tocar nos bares, ingenuamente, e as pessoas foram gostando, elogiando.
Antes de lançares o teu primeiro disco, já eras bem conhecida na cidade, né? Tinhas um grande público.
Fiquei uns quatro anos tocando em bares até lançar esse primeiro disco, então começaram a acontecer várias coisas bacanas na minha vida. Comecei a ser convidada para abrir shows de grandes artistas que vinham pra cá, tudo isso graças a um produtor local, conhecido como Dom King. Ele abriu pra mim o espaço no teatro, então comecei a levar meu público, que era de bar, pra me assistir no teatro. Meu primeiro show solo no teatro foi antes de lançar disco, no [teatro] Margarida Schivasappa lotado, com pessoas sentadas no chão. Como minhas composições começaram a ser muito bem aceitas, surgiu a ideia de fazer meu primeiro disco, que foi em 2005, o “Livre”. Esse disco já veio com sucessos maravilhosos e cheio de felicidades pra mim.
O teu segundo disco “Castelo de Luz” (2009), foi muito elogiado, inclusive pelo Nelson Motta, que é um dos nomes mais respeitados da música no Brasil. Como tua música chegou nele? Qual a relação de vocês?
Eu buscava os contatos de jornalistas e produtores pra onde eu pudesse mandar os discos. E eu mandei pra ele, pro programa de rádio que ele tinha, o Sintonia Fina. Um belo dia, eu vejo a capa do meu disco no informativo do programa, como uma indicação do Nelson Motta e com vários elogios. Eu queria chorar, rir, foi uma festa. Quando lancei um EP, antes desse meu quarto disco de agora, Nelson Motta me mandou um e-mail quando recebeu: “Querida, seu disco está lindo! Poderoso! Amei ‘Amor de Promoção’. Quando vieres ao Rio, venha tomar um cappuccino em minha casa”. A primeira chance que tive fui à casa dele, e aí nunca mais nos separamos. Ele participou na escolha de repertório do quarto disco, trocamos várias ideias. Hoje é ele é uma figura muito importante na minha vida, nós temos uma relação de amizade. É um cara em quem eu tenho a maior confiança. Ele é um mentor, um cara com quem eu aprendo.
Antes de falar desse quarto trabalho, queria te perguntar por que resolveste gravar um disco só de regravações de clássicos do brega paraense – o teu terceiro, o “Amor, amor” (2010)...
Não existia o projeto de fazer um disco. O público é uma voz muito presente na minha vida. Eu formatei um show pra fazer uma homenagem aos meus pais, pelos bregas que eles ouviam na minha infância inteira, e fiz esse show em 2009. Aí o público saiu de lá dizendo que queria aquele CD, que queria levar aquele show pra casa. Eu dizia que não tinha CD, e o povo pedia. Fiz o CD, e foi um sucesso aqui na região, porque até quem torcia o nariz pro brega ficou feliz com as releituras. Algumas pessoas não entenderam, achavam que eu ia virar “bregueira”.
Sinto que esse trabalho te puxou mais um pouco para a música regional paraense, e isso se vê claramente no teu quarto disco, o “Lia Sophia”(2013). Foi isso mesmo que aconteceu?
Meu trabalho sempre foi muito pop. Antes as influências tanto do Pará, quanto do Amapá e da Guiana eram uma presença mais sutil. Esses elementos entravam de maneira mais delicada que hoje, mas o som continua a ser pop. No “Amor, amor”, eu fiz uma pesquisa muito profunda e longa sobre o brega pra determinar também o repertório. Como ouvi muita coisa, lembrei minha infância, as festas em casa, toda essa coisa da música feliz, da música feita pra dançar. Isso com certeza deixou uma semente enorme pra produção desse quarto trabalho.
E como foi que surgiu todo o sucesso da música “Ai, Menina”, um carimbó que foi parar na trilha sonora de uma novela da Globo e te projetou nacionalmente?
Compus a música ainda sem a intenção de gravar o quarto disco, me lembrando das coisas que meus pais gostavam de ouvir. Eu sempre tive muita vontade de fazer uma homenagem a esse ritmo, porque sempre tive uma paixão muito grande por essa cultura. “Ai, Menina” surgiu muito em função disso, em uma brincadeira muito boba. Imaginei um gringo que vinha pra cá e se apaixonava por uma menina que dançava carimbó. Aí na sequência fiz outras duas músicas – “Amor de Promoção” e “Salto Mortal” – e gravamos. Lancei na internet, fiz um EP com as três faixas e comecei a fazer aquele trabalho de formiguinha, mandando pra produtor, jornalista, pra rádio e todos os lugares. Aí recebi a notícia que a Rede Globo queria “Ai, Menina” na trilha da novela “Amor Eterno Amor”. Foi um susto, porque, até então, essa música não tinha sido lançada em nenhum disco.
Como eles descobriram a música?
Quando participei de uma cena da novela, conheci o produtor que apresentou a minha música lá. Ele contou que, pesquisando na internet, ouviu a música e já levou pra lá dizendo que era a música pra personagem da Andreia Horta, a Valéria – e todo mundo concordou.
Às vezes o artista não tem essa noção de como é importante espalhar essa semente por aí. Até hoje eu faço isso e dá certo. Com a música na novela, veio uma visibilidade enorme, puxando os meus outros três trabalhos. Quem ia pesquisar sobre mim, descobria que já existia uma artista pronta, e isso puxou pro quarto disco.
Então, apresenta o “Lia Sophia”, esse teu quarto trabalho.
Esse disco é uma festa, porque eu estou vivendo tanta coisa feliz que, pra mim, esse trabalho é uma celebração. Ele tem carimbó, zouk, merengue, cúmbia. É um disco que vem com essa intenção festiva, que não é muito reflexivo. Eu tive a alegria de ter um parceiro maravilhoso, o Félix Robatto, que produziu o disco comigo. Esse disco é patrocinado pela Natura Musical, por meio da Lei Semear, e tem quatorze músicas. Dez são composições minhas em parceria com alguns artistas. Das outras quatro, uma é da Dona Onete, outra do Mestre Curica, tem uma parceria do Carlos Santos com o Alípio Martins e outra do Claudio Zoli, que é “Noite do Prazer” – e foi uma sugestão do Nelson Motta, que me viu tocando essa música no programa Som Brasil. A minha ideia, presente também no projeto gráfico, é dizer que a minha floresta, o lugar de onde venho, é diferente, é pop, é vibrante, é quente. Ela tem uma coisa especial. É um disco quente, pulsante.