Quarenta anos de fotografia ainda é pouco para Dilermando Cabral. Dotado de muito talento, curiosidade, obstinação e alguma sorte, o fotógrafo nunca desperdiçou uma porta aberta. A disposição para experimentar caminhos novos e a coragem de abandonar os antigos fizeram dele um dos profissionais mais versáteis de Belém – e, provavelmente, um dos que mais tem história para contar.
A relação com as imagens veio de muito cedo, mais por conta da imaginação do garoto do que da vontade profissional. Observador e inventivo, folhear álbuns de fotografia era a principal diversão de Cabral na infância, fato ao qual ele atribui suas primeiras percepções no ramo. “De seis filhos, eu era o único homem. Não tinha companhia para brincar. Meu passatempo era abrir as gavetas onde meu pai guardava os álbuns de fotos”, conta. “Passava horas deitado, observando aquelas imagens, viajava em cima de cada foto que eu olhava”. Um pouco mais tarde, em meados da década de 70, viajou de férias para o Rio de Janeiro com a mãe. Na ocasião, o pai deu um dinheiro para que ele comprasse um presente para si. Escolheu uma câmera. “Ela era tosca, de plástico. O resultado era terrível, eu não tinha nenhuma noção e a máquina não ajudava”, ri com a lembrança. Foi o primeiro passo em direção à carreira que lhe motivaria a dedicação de uma vida.
As condições ruins não o impediram de registrar tudo o que via pela frente. Ao contrário: o instigou a fazer melhor. Pegava emprestada a máquina da irmã, a câmera do pai, e ia experimentando. Passaram-se uns anos até que veio o primeiro convite profissional. “Um amigo publicitário viu umas fotos minhas e me convidou pra fazer uma série de fotos para uma campanha publicitária. Não pensei duas vezes”. Enquanto trabalhava nas imagens comerciais, seguiu fazendo seus próprios registros. Não tardou muito para que chamasse atenção de outro importante nome da comunicação: em 76, após um convite, assumiu o cargo assistente de cinegrafista em uma emissora de TV local, recém-inaugurada. Lá, vivenciou várias funções completamente novas. “Fui operador de moviola, cheguei a editar material, trabalhei no laboratório, aprendi a revelar filme de cinema, fui pra câmera de estúdio... um curso prático completo”, diz.
Dois anos depois, veio um novo convite da mesma empresa. Dessa vez, para atuar como repórter fotográfico no jornal impresso. Mais uma vez, disse sim. Com apenas 19 anos, passou por todas as editorias. “Fiz social, polícia, matérias especiais, cultura... Ali foi minha faculdade de jornalismo”. Ficou lá por pouco mais de um ano. Depois, voltou para a Mendes Publicidade, cujo estúdio de fotografia ficou sob sua responsabilidade. Nesse trabalho, ganhou prêmios e know-how para montar seu próprio estúdio, além de dedicar tempo para as pesquisas e interesses pessoais.
O conforto da vida menos corrida não foi argumento bom o suficiente para manter Dilermando afastado da correria do jornalismo. Com a queda do mercado publicitário em meados da década de 80, começou a fazer alguns trabalhos para a sucursal da Veja. Em 85, foi convidado a ficar na editora Abril, no lugar de João Ramid, após sua transferência para o sudeste. Novamente, o “sim” foi a resposta imediata. “Foi uma experiência desgastante, complicou até meu casamento. Eu cobria muitos problemas agrários, precisava viajar... Tive que adiar o batizado da minha filha mais velha quatro vezes”, relembra. Três anos depois, saiu. Cansado e sentindo falta da família, resolveu retomar o estúdio, onde ficou até que recebesse o “chamado” [mais um] do fotojornalismo, área em que atua até hoje.
Perguntado sobre o que o levou a aceitar todos os convites que recebeu, Dilermando responde de um jeito simples, porém sábio, que “toda experiência nova vale a pena. Tive oportunidade de conhecer outros lugares, de aprender linguagens diferentes entre publicidade, cinema, fotojornalismo...”. As diferentes áreas de conhecimento lhe proporcionaram pluralidade – além de um acervo documental valioso. “Tenho muito material da Amazônia, milhares de negativos arquivados, muitas fotos inéditas”, orgulha-se, mais ainda por perceber que tudo é resultado do seu próprio esforço e do aproveitamento das chances que teve. “Me virei. Comprei meu primeiro equipamento com dinheiro emprestado, somado aos bicos que fiz fotografando casamento, batizado... antigamente era assim. Não tinha curso de fotografia no Brasil. Você tinha que ser autodidata e encontrar portas abertas”.
A falta de fonte de aprendizado teórico, aliás, nunca foi um obstáculo definitivo para o profissional. Apesar dos poucos livros e referências, a pesquisa sempre foi parte forte de seu trabalho – e seu meio de nunca estagnar. Um forte exemplo disso é que ele foi o responsável pela montagem do primeiro laboratório colorido do jornal O Liberal, ainda manual, abrindo as portas para a era da digitalização fotográfica – um sistema que durou anos, até a modernização completa do parque gráfico. “Ficaria muito caro sustentar um minilaboratório tecnológico porque ele teria que ser terceirizado, então, montamos esse. E, modéstia à parte, foi o melhor. Um laboratório excelente, de custo reduzido, onde poderíamos ampliar fotos de qualquer tamanho”, explica. O espaço facilitou bastante o trabalho e fez surgir a figura do editor de fotografia em Belém. “Os fotógrafos tiravam várias fotos iguais e todas eram reveladas, porque estavam no mesmo filme. Muito dinheiro estava sendo desperdiçado. Compramos um Fujix, um aparelho que ligava na televisão. Cortávamos o negativo de seis em seis fotos e projetávamos na TV. Só a foto escolhida era revelada, no nosso próprio laboratório”.
A curiosidade, a ousadia e o interesse pelo novo foram fatores determinantes para os resultados que Dilermando alcançou em seus projetos pessoais. Sistemas de solarização por filme, inversão de fotografia por traço, fotografia infravermelha e grafismos são algumas das refinadas técnicas que o fotógrafo descobriu e passou a dominar, após muita obstinação e experimentalismo. “Sofri muito para chegar a esse ponto. Não tinha ‘sites de busca’ para perguntar como fazer”, diverte-se. A fotografia com infravermelho, por exemplo, é a mais trabalhosa. “Levei dias para descobrir que infravermelho só rende bem com a máquina no tripé, longa exposição, com o ISO lá embaixo”, explica. E esse está longe de ser o único elemento de dificuldade: “o outro ‘porém’ é que, quando a foto aparece no computador, ela é totalmente vermelha. Você tem uma foto vermelha, que é colorida por baixo. Aí tem que equalizar todos os espectros luminosos, indo e voltando, até chegar a um bom resultado. Vai trabalhar nos canais de cores”, ensina. O processo é demorado: horas por foto, às vezes até dia. “Mas o resultado é único”. Já o grafismo, material criativo que também é recorrente nos seus trabalhos, é fruto de um critério mais empírico: “grafismo está em todo lugar, deixa a minha mente aguçada. Por exemplo, estou aqui, conversando com você, e começo a ver grafismos no ambiente”.
As fotos feitas com essas técnicas, de visual impressionante, vêm servindo de teste para um projeto maior – que ainda está em fase de planejamento. Cabral planeja mesclar os conhecimentos em uma expedição dupla. “Quero ir ao Marajó, fazer o levantamento da vida do caboclo, do vaqueiro marajoara. Depois, irei à Austrália, fotografar o cowboy do deserto australiano. Quero traçar um paralelo entre os segmentos”, empolga-se. “O que eu quero mostrar é que, apesar das culturas e dos lugares diferentes, os hábitos são universais. O ser humano é um só”. A ideia surgiu depois de uma série de viagens feitas em 2003, em que ele pode observar esses aspectos das pessoas. “Fotografei pessoas em Nova Iorque por 20 dias. Depois, passei um mês viajando de ônibus pela Europa registrando os costumes. O último lugar foi o Japão. É impressionante como o ser humano leva uma vida de formiga”, comenta. O novo projeto está no aguardo de patrocínio, e depois deve gerar uma exposição.
Dilermando destaca o saldo de todos os anos voltados para a fotografia: “alegrias, coisas hilárias, coisas tensas, experiências incríveis, condições lamentáveis...”. Espectador das mudanças ocorridas no mundo e na sua própria profissão, ele defende que a modernização não é vantajosa para o ramo caso limite o profissional. “A fotografia cresceu, mas se banalizou. Qualquer um pode comprar qualquer câmera. Isso é ótimo, por um lado. Desperta o interesse nas pessoas. Mas a era digital não está fazendo grandes fotógrafos. Hoje, tem muito programa que ajuda, mas a real ferramenta do fotógrafo é o conhecimento de laboratório, a criatividade”, acredita ele, que também afirma que o fotógrafo tem que saber fazer sua própria revelação. “Antes, a gente tinha que saber de muita coisa: densidade, temperatura, tipo de papel... Eu, por exemplo, fazia meus reveladores, fazia sépia com a mão, lavava a foto com sal para não amarelar”, conta. Na opinião dele, é função dos profissionais mais antigos repassar esses pequenos truques para os mais jovens, que não os descobriram empiricamente. E arremata “é uma bobagem não ensinar os macetes que a gente aprende. Quem pensa que não deve, já não é um bom fotógrafo”.
Sobre o mercado brasileiro, Cabral demonstra certo ressentimento. A desvalorização do profissional de fotografia, a seu ver, transforma o retrato em uma arte marginalizada. “Fotografia é tão arte quanto uma pintura. É triste que, no Brasil, não se veja assim. Aqui, ela não tem o mesmo valor que na Europa, nos Estados Unidos. Eles sim valorizam a arte”, opina ele, que negocia fotos para bancos de imagem no mundo todo. Para Dilermando, respeitar a linguagem da grafia com luz é respeitar a história da humanidade. “A foto será, no futuro, o que as pinturas rupestres foram na pré-história. É como o homem do futuro vai ver quem nós fomos”, defende, com a autoridade de quem – por quarenta anos – viu o mundo (e a fotografia) mudar.