Espelhos de si

O universo feminino desnudado pelo talento da artista plástica Elieni Tenório

15/12/2010 16:29 / Por: Arthur Nogueira/ Fotos Luiza Cavalcante
Espelhos de si
Elieni Tenório: sensibilidade e talento para representar o feminino e todas as suas nuances

 

Enquanto subíamos as escadas do ateliê, a anfitriã repetia, com entonação e vocabulário muito particulares, que não deveríamos "reparar a bagunça", porque a reforma de sua casa não estava concluída e, portanto, o papo correria em meio à construção. Minutos mais tarde, já instalados, à vontade e naturalmente sem "reparar" qualquer desordem, ela se referiria novamente às estruturas inacabadas, porém sob uma perspectiva adversa, relacionada ao seu processo criativo - "baseado na construção e desconstrução". De fato, essa era a característica que saltava aos olhos no ambiente daquela sala incompleta, repleta de esculturas, manequins, gravuras e telas que, a partir de formatos diversos, traduziam para nós a personalidade exuberante de uma artista em constante movimento e reinvenção, cuja velocidade do pensamento por vezes atropelou a retórica. "Quem adquire um trabalho meu leva consigo um pouco da minha essência", declarou em dado momento, como se dividindo conosco a descoberta.

Galeria de fotos

Aos 56 anos, Elieni Tenório expõe a própria trajetória com invejável viço. "Nasci para ser artista, desde criança gostava de desenhar, cortar o pano e montar no vidro", conta. Natural de Mazagão, no interior do Amapá, jamais cogitou se tornar a premiada profissional que é hoje, com um currículo prenhe de exposições ao redor do mundo. "Não pensava em futuro, mas sentia que estava no caminho certo", revela. O foco de sua criação, não por acaso, é o universo feminino, marcado pelo senso intuitivo, a partir do qual desenvolve peças que agregam toda a sorte de cores, formas e superfícies - "a figura da mulher se faz presente porque minha arte é um espelho de mim mesma".

 Hoje, esposa, mãe e avó dedicada à família, classifica sua identidade artística como resultado de uma trajetória incomum, marcada por provações de cunho moral. "Exatamente por ser mulher, era mais difícil expressar o que sentia [as angústias e desejos] e isso me instigava ainda mais a produzir", ponderou. "Imagine você que meu pai era policial e evangélico", riu-se. "Quanto mais dizia ‘não’, mais eu me sentia desafiada."

 Ao abordar a temática do desejo, Elieni afirma que almeja revelar fantasias e, como uma espécie de Hilda Hilst das artes visuais, transitar sobre a linha tênue que separa a sensualidade e o erotismo. Por conta disso, o artista plástico e fotógrafo Marco Antonio Serrão, ao escrever sobre o trabalho da amiga com altas doses de reverência e entusiasmo, citou Picasso – "a arte nunca é casta e deverá ser afastada de toda a estupidez inocente". "Penso que deve ser assim, até porque defino o processo de criação como uma espécie de masturbação mental", diverte-se Elieni. "Como posso dizer o que penso, me expor, traduzir a minha paixão, sem atingir o gozo pleno?", questiona antes de traçar o instigante comparativo de que finalizar uma obra de arte é como "chegar ao clímax". "Dizem que o artista não tem sexo, eu tenho vários", complementa, aos risos.

 

A artista se especializou em técnicas diversas, como a pintura

 

Devido ao caráter sensorial de seu trabalho, a artista se especializou em técnicas diversas que não só a pintura. Em texto de apresentação da exposição individual "Silêncio que evoca" (1999), ela afirma que sua obra "compreende muitas experimentações, incluindo técnica mista sobre suportes pouco convencionais", tais como papel de parede, vinil, tecidos e até embalagens ou frascos vazios.

 Em uma fase intitulada "Volúpia" (2003), tal diálogo de referências se apresenta a partir de discos de vinil forrados com meia-calça feminina, que adquirem forma semelhante às telas de bordado antigas e que, ora pintados com cores berrantes, ora costurados com linhas grossas, insinuam a anatomia dos órgãos sexuais humanos. Em algumas dessas peças, a partir de 2007, a artista aplicou frascos de desodorante roll-on, que, estilizados, assumiram a forma de um falo. "Antigamente colocava um véu no meu rosto, mas hoje admito que meu trabalho é erótico", diz.

 Quando analisa o domínio da costura, Elieni Tenório mais uma vez busca refúgio em referências de outrora. "Minha mãe era costureira", relembra. "Ao trabalhar num pano, identifico minha própria história, mas principalmente a dela". Ainda com relação ao que ficou para trás, a artista demonstra interesse na figura do corselet (ou espartilho), uma peça do vestuário feminino largamente utilizada no passado. "Ele tem a função de delinear a cintura e deixar a postura ereta", explica. "Ao mesmo tempo em que aprisiona o corpo da mulher, modela-o", complementa, com base em estudos relativos à geometria feminina.

"Sobre a Pele", de 2006, rendeu vários prêmios à artista plástica

 

Não por acaso, em ‘Sobre a pele’ (2006), trabalho ganhador do 2° Prêmio do Salão Arte Pará daquele ano, a artista desenvolveu, por meio de manequins femininos, uma espécie de mapa investigativo de compreensão do corpo da mulher, no intuito de estabelecer seus limites e compreender as relações entre o sujeito e o mundo exterior. As peças, ao longo do tempo, sofreram adaptações, variando formato e suporte, e foram contempladas em concursos como a Bolsa de Pesquisa do Instituto de Artes do Pará – IAP (2009) e o edital Rumos Itaú Cultural – Artes Visuais (2009).

 Pelo caráter particular e inventivo, a obra de Elieni Tenório desperta interesse por onde passa. Não foi diferente na Alemanha, mais precisamente na Galeria Bellevue-Saal, em Wiesbaden. Em uma mostra intitulada "Obsessão" (2009), a primeira individual que realizou no exterior, suas peças foram sucesso de crítica e se tornaram conhecidas em praticamente toda a Europa. "Nunca imaginei ser recebida dessa forma, porque eles [os europeus] são introspectivos, diferentes de nós, brasileiros", compara. "Além disso, o reconhecimento lá é muito importante para eu me sentir segura e tranquila com o que faço aqui", diz ela, que em 2010 completa vinte e um anos de carreira.

 Em clima de descontração e hospitalidade, depois de tantas histórias, a conversa finalmente chegou ao fim. Pausa para fotos e, então, hora de descer as escadas, onde tudo começou. No caminho de casa, a fim de corroborar as impressões acerca desta obra tão particular e, ao mesmo tempo, múltipla, visitei o site elienitenorioartplast.blogspot.com. Fui recebido com uma trilha sonora bastante sugestiva - Edith Piaf, em ‘La Foule’. Aí não restaram dúvidas de que estava certo desde o início.

 

A sensualidade permeia os trabalhos de Elieni desde que ela descobriu os caminhos da arte

Mais matérias Entretenimento

publicidade