Com uma trajetória digna de livro e/ou filme, o comentarista de voz e trejeitos inconfundíveis do carnaval da Rede Globo lembra da infância nos balneários do Pará, garante que se aposentar não é uma opção e fala sobre o paralelo que vive entre a vida regrada, caseira, e o personagem propositalmente criado com muito estudo e empirismo.
Há quem diga que o preço mais caro a se pagar é o de manter-se fiel a si mesmo. Milton Cunha concorda com isso, mas fazendo essa máxima parecer um financiamento de suaves prestações, daquelas de prazo a perder de vista. Leve, sorridente e, sobretudo, carismático, ele sai de Belém para o Rio de Janeiro no início da década de 80 com um trocado no bolso, algum desgosto dos pais e a certeza de que algo muito grande o esperava - e que sorte a nossa. Psicólogo de formação, conta que estudou para ter firmeza diante das facilidades enganosas da vida que encontraria na cidade grande, e ele garante que não foram poucas. “Eu passei onze anos da minha vida trabalhando sem parar, porque não havia plano B. Ou eu passaria muita fome”, lembra, sem esboçar nenhum “coitadismo”. Inegavelmente orgulhoso da vida que vive e de tudo o que construiu, desde o primeiro quitinete em Ipanema, quando ele se torna carnavalesco da Beija-Flor, à vida a dois com o marido, Eduardo Costa, com quem é casado há 12 anos, ele confessa, aos 57 anos, que se divertiu tanto que está cansado. “Sobrevivi porque nunca usei nenhum tipo de droga ilícita. As pessoas não têm ideia, mas eu sou muito doido! Há um regozijo na minha alma por eu ser quem eu sou”, explica, confirmando que a vida vai, sim, muito bem, obrigado, em meio a uma rotina muito intensa. “Muita coisa, muita gente, muito trabalho, muita correria, muito avião e está tudo ótimo”, confirma. Confira a entrevista completa:
Estás fora de Belém há muitos nos. Ainda assim, existe uma relação tua com a cidade, ou mesmo com o Estado? Se sim, é boa? Se não, por quê?
Eu estou fora de Belém desde 1982, quando peguei um ônibus e fui embora. Tinha terminado a faculdade de Psicologia e parti para encontrar o meu futuro, meu sonho. Eu, literalmente, com a cara e a coragem, $100 no bolso, eu parti porque eu acreditava que o futuro seria bom. E agora, passados 37 anos, nossa... 37 anos se passaram e... Eu volto sempre, mas eu sempre vou contratado a trabalho, sabe? As minhas passadas têm sido muito rápidas. Adoraria voltar a Peixe Boi, passeando, não trabalhando. Salinas, Mosqueiro, Icoaraci, que são as lembranças da minha infância. Papai e mamãe já faleceram, [tenho] dois irmãos aí, tios. Sempre que tenho evento aí aparece alguém da família para me ver, é uma alegria, uma festa. Então está tudo bem, tudo certo, mas a vida é muito corrida, né? Queria poder ir mais aí. Ainda bem que a minha “irmã”, Fafá de Belém, me convida sempre para ir ao Círio, ficar na varanda dela, e sempre que posso, vou. E agora [referindo-se ao Círio 2019], por exemplo, eu fui e saí andando ali por São Brás. Vi a casa onde nasci, passeei no mercado, que está muito abandonado. Achei as ruas escuras, mal iluminadas, sujas. Acho que a “minha” Belém era mais bem cuidada, sabe?, que está na minha memória, a cidade hoje está mais mal cuidada.
Tua primeira formação é em Psicologia, mas na pós-graduação você se dedicou a buscar conhecimento acadêmico sobre a área na qual escolheste trabalhar. Em algumas entrevistas, disseste que é justamente esse conhecimento que te aproxima das manifestações populares. Como foi para você encontrar essa conexão? O contato com as manifestações te fez querer estudar ou quiseste estudar para entender melhor as manifestações?
Olha, eu fiz Psicologia porque eu achava importante dominar os processos psíquicos dos fantasmas. Todo mundo tem fantasmas, só muda de endereço, de perto ninguém é normal. Então eu fiz a Psicologia para me dar base de amadurecimento, eu precisaria muito dela porque a minha luta, imagina... Chegar ao Rio de Janeiro, aos 19 anos, em 82. Teria que ter uma estrutura psicológica muito forte para dizer não às facilidades enganadoras da vida. E eu tinha muito foco, queria muito trabalhar. Então logo, de 82 até 90, eu trabalhei com moda. Fiz muita produção de moda para o Fantástico, da TV Globo, trabalhei no Scala Rio [casa de espetáculos localizada no Leblon], do Chico Recarey, com a Watusi [cantora e bailarina], Grande Otelo [ator, 1915-1993], o diretor era o Maurício Sherman [1931-2019]. Eu era camareiro, e via aquelas estrelas e tal. A minha grande chance vem, porque eu não conseguia me sustentar com o teatro, não dava o dinheiro, em 1993, quando eu, depois de onze anos no Rio, sou chamado pelo Anísio [Abraão David, atual presidente de honra] da Beija-Flor. Nessa primeira década eu trabalhei tão intensamente que eu não dormia, porque não tinha plano B. Se eu não trabalhasse, eu passaria muita fome. Juntei dinheiro e quando começam os anos 90 eu já compro o primeiro quitinete, então chego na Beija-Flor já instalado, morando em Ipanema, na Visconde de Pirajá. Fico quatro anos, depois passo outros dois na União da Ilha, depois faço São Clemente, aí você sabe que há um grande incêndio no barracão da União da Ilha [em janeiro de 1999] e eu me retiro da cena, “famosinho”, e vou ficar um ano afastado. É nesse um ano que decido voltar a estudar, porque só tinha trabalhado. Já era carnavalesco e escolho voltar para as Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e eu passo no mestrado porque antes eu fiz especialização em Moda Indumentária, na Estácio de Sá. Fico quatro anos em Ciência da Literatura e Teoria Literária, estudando os enredos de Joãosinho Trinta [carnavalesco, 1933-2011] e publico a dissertação “Paraísos e infernos nos enredos escritos de Joãosinho Trinta”. Dali, parto para o doutorado direto e vou fazendo escola de samba, até 2009, ano em que apresento a tese “Rapsódia brasileira de Joãosinho Trinta”. Dou dois anos de pausa e em 2013 começo o pós-doutorado na Escola de Belas Artes. Basicamente, sou um estudioso, sou um enfeitado porque adoro meu personagem, de plumas e paetês, da televisão, e sou também um homem do povo. Eu frequento muito o botequim, a porta da escola de samba. Acho que emplaco na TV porque tenho a teoria, a prática e o personagem. Na hora de falar muito sério, eu falo. Na hora de contar a piada, eu conto. Na hora de dar pinta, eu dou. Mas eu consigo juntar as três pernas do que é preciso para ser um comentarista de manifestação popular. Porque já fiz muito também Boi de Parintins, foram cinco anos na transmissão da Band, então me movimento bem nesse meio, e acho que iria bem para comentar o Maracatu, o Galo da Madrugada, iria bem em tudo isso.
Em paralelo a todo o conhecimento que adquiriste para ser um profissional do carnaval, que já atuou em tantas frentes, você criou um personagem divertido, cheio de peculiaridades, seja no modo de falar, de se vestir, e com o qual o público se identifica. Como é o Milton Cunha fora disso? Uma vez o Sidney Magal contou que uma fã meio que se decepcionou com ele ao encontrá-lo quase que anônimo em uma padaria, e ele disse que as pessoas têm essa ideia de que ele é o cantor de Sandra Rosa Madalena 100% do tempo. É assim com você também? Como você lida com isso?
O personagem é ótimo para ganhar dinheiro. É bom para puxar o Ibope. Mas é claro que, quando a gente acorda na segunda-feira às 8h, você não dormiu maquiado, com plumas. Leva uma vida absolutamente normal, regrada, então é claro que sou muito espirituoso, adoro os seres humanos, abraçar todo mundo, beijo todo mundo, sou bacana. E quando a pessoa me enche o saco eu digo “chega, vou me retirar”. Sei a hora de me recolher para também me resguardar.
Você já foi carnavalesco, criou enredos vencedores, hoje é comentarista dos desfiles do Rio de Janeiro e criou uma identidade muito própria e nova dentro de algo que para o público já fosse batido, que é a transmissão da Rede Globo. Você já chegou com essa ideia de sacudir um pouco as coisas? Ou foi acontecendo?
Eu sempre fui muito intuitivo, tive essa minha forma peculiar de ser. Aos quatro anos de idade eu já era essa coisa, esse trem. Me lembro do desespero dos meus avós, dos meus tios, da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos para me enquadrar. Eles não sabiam o que fazer comigo. Sempre não negociei. Ser isto que eu sou é o ar que eu respiro. A outra opção é morrer, desaparecer. Então eu era exatamente isso, tinha esse braço, essa mão, esse olho. Meus pais morreram sem conseguir compreender a liberdade que eu preciso, que eu necessito para ser o que nasci para ser. Então eu não negociei, eu já dei fora em governador, passa fora em deputado, eu sou isso. Querida, eu não tô te pedindo aprovação, eu não preciso da tua aprovação. Eu enfrentava padre do colégio marista, salesiano e as freiras do colégio Berço de Belém. Nasci rebelde. Nasci assim: “não, querida, eu não vou ser o que vocês querem, vou ser o que sou, não vou para a hipocrisia que vocês me propõem”. Detesto hipocrisia, ser e não poder contar que sou, em qualquer coisa. Para o bem e para o mal, o público me assiste e diz: é de verdade, essa é a verdade dele, gosto ou não gosto, mas não percebo meia mentira. Ele não está fingindo ou interpretando, é isso, essa coisa. Acho que fica mais fácil para o público gostar de você sabendo que você é de verdade. E nessa verdade, quando fizeram o teste comigo, na Globo, no ar, eu fui exatamente para o outro lado, para onde ninguém iria. Sabia, desde que eu nasci, que só tem uma chance de você acontecer, que é sendo único. Você não é ninguém e ninguém pode ser você. Desde o primeiro momento, os diretores diziam “nossa, mas você é tão coloquial, tão solto” e tal. Se na TV Globo isso foi um ganho, eu te confesso que... Por exemplo, quando fiz o teste para a TV Educativa (TVE), a diretora disse “se você não fosse tão, se você não fosse tão assumido, a gente te daria um programa para apresentar”. Rede Brasil, ano de 1999, 1998, quando saio da Beija-Flor e vou pra União da Ilha. Faço o teste e a mulher me diz que sou gay demais. Querida [risos], eu saí de Belém do Pará, enfrentei pai e mãe, vim passar fome no Rio de Janeiro, tu acha que eu tô aqui para ser o que tu queres? Um boneco na tua mão? Enfia no c* esse teu galã apresentador de televisão, que para mim, ele não serve. Hoje, olhando para trás, fico felicíssimo de não ter perdido um segundo da minha existência nessa tentativa humana de mentir, de transformar todo mundo em padrão, ter um lugar na prateleira, menino veste azul, casa com mulher, tem filho... Deus me livre. Nunca tive qualquer pretensão de ter essa vidinha [risos]. Eu saí daí de mala e cuia, literalmente, uma mala de papelão e a cuia era de tacacá. E cada vez que eu desembarco numa capital distante do mundo mais eu estou aí perto, das tribos, da minha infância, das aldeias. Cada vez que eu desembarco na Groenlândia, toda vez que vou para os confins da África, da Ásia, eu estou muito próximo daquele silêncio da floresta. Entrava, sentava nos troncos e ficava ouvindo aquele silêncio, imaginando meu futuro, maquinando como ia ser. Sempre pensando nessa verdade, sabia que essa verdade iria me guiar. Quando cheguei na frente da câmera, só mantive isso. Pessoas chegam na frente da câmera e a câmera muda elas, elas montam um personagem. Eu, ao contrário, venho de uma vida vivida enlouquecida. Eu me diverti. Estou com 57 anos e estou cansadíssimo de tanto de diversão que eu já tive, e de toda a diversão que pinta por eu ser eu. Então, se eu puder dar um conselho aqui é: sejam vocês, 100%, total, sejam íntegros, se diferenciem da massa, da multidão do gado [risos]. Seja uma vaca cor de rosa [risos]!
Quais os teus planos para o futuro? Tens vontade de mudar de cargo, de voltar para os barracões...? Pretendes continuar estudando?
Meu plano para o futuro é ser bem feliz. Isso inclui continuar na TV, fazendo ficção. Quero deixar um pouco o Jornalismo e quero interpretar. Acabei de fazer o Zorra Total [humorístico semanal da Rede Globo], quatro quadros, que eles me chamam. Adoro fazer texto escrito para mim. E aí eu enlouqueço com o texto do autor. Queria fazer uma novela, um mordomo, um diretor de redação de uma revista de moda. Queria fazer um cangaceiro matador, queria tantas coisas, fazer Oscar Wilde [escritor irlandês, 1854-1900]. Meus planos incluem ficção, muito, teatro e, não, não volto para barracão não, de jeito nenhum. Fiz 20 anos, chega, já foi. Adorei fazer, aprender tudo, mas chega. Gosto de fazer cenários para shows, montar projetos, mas essa coisa de ficar um ano dentro do barracão, com a escola, produzindo um desfile de uma hora e 20 minutos, não estou mais nessa não. Gosto de fazer coisas mais rápidas, mais curtas. Já estou indo para os 60 anos, a força física não é mais tamanha, e vou precisar dar uma descansada. Mas como eu tenho uma vida bem direitinha, organizada, está tudo se encaminhando para eu ser um velhinho sassariqueiro, um velhinho da pá virada e do barro remexido.
Você também já fez Carnaval fora do Brasil, várias vezes. É melhor? É diferente? Quando fazes, ou quando fizeste, tentas, ou tentaste, levar elementos daqui para lá, ou vice-versa? A ideia que se tem de carnaval brasileiro é muito diferente da realidade?
O carnaval internacional tem manifestações específicas na China, Uganda, no Caribe. Mas sabe o que percebo e que está na moda agora? É uma cópia do Carnaval carioca. Você tem Londres fazendo em Nottin Hill, que eu já fiz duas vezes, Suíça, carnaval de Lausanne, já fiz três vezes. São escolas com os moldes do Brasil. O Japão também nos copia muito. Quando faço, mato a saudade do barracão. É bem verdade que os barracões internacionais, Argentina inclusive, na província de Saint Louis, são barracões em escala bem menor. Os chassis são menores, as esculturas são mais baixas. Gosto de fazer e gosto de ver como o Brasil, que já exportava novela e futebol, agora explora esse modelo de narrativa super brasileiro. Ala, ala, ala, carro. Ala, ala, ala, carro. Ala, ala, bateria, passistas, alegoria. Isso é uma forma de narrar carioca, nascida nos morros, e é diferente do cinema, do teatro, da ópera, do balé, do circo. Bacana ver o mundo copiando, interessante ver. Engraçado é que quando sambam, cantam, tocam, dançam, e eles fazem isso, com enredo, com uma história, o samba é meio mequetrefe, descompassado. Quando dançam, parece que estão tendo um ataque epilético. Mas está tudo certo, estão se esforçando para serem sedutores, cariocas. Eu vejo como uma homenagem. Dá vontade de rir, de cair na gargalhada, mas eu dou força! Você vai gritando, sambando e eles vêm atrás. Joãosinho Trinta dizia que a alegria brasileira vai redimir o mundo no terceiro milênio. E a indústria cultural diz que o valor de um produto é a experimentação da alegria. O turista quer o sensorial da felicidade - e isso sobra no desfile da escola de samba, né? Quando passa o cortejo, a procissão, todo mundo sorri. É muito potente, energético. Eu vejo que essa proposta de espetáculo de alegria é o futuro de tudo e todo mundo está copiando. Tenho participado de muita coisa pelo mundo. Em Toronto, no Canadá, eu participo do Brazilian Bowl há sete anos. E tudo continua.
Pensas em parar, te aposentar? Transformar tua vivência, não só de Carnaval, em livro ou algo do tipo? És extremamente discreto em relação à tua própria vida. Tens vontade de um dia mostrar, em detalhes, o que o Carnaval, por exemplo, fez pela tua trajetória?
Não penso em me aposentar porque mesmo velhinho eu terei forças para escrever, gravar vídeos, continuar nessa batida - talvez não com essa força, mas vou continuar. Lancei um livro em Belém, na minha juventude, década de 80, “O Estranho Peixe que Pulou”. Em seguida, lancei “Carnaval e cultura - técnica e poética no fazer escola de samba”, em 2004, 2005. E agora vou para o terceiro, um livro de textos, mensagens, reflexões que publico na internet, me pedem muito. Vai se chamar algo como “um dedo de prosa” ou “saída para dentro”. São textos e fotos da minha vida, das minhas andanças pelo Brasil e pelo mundo, minhas crenças, no sentido da reflexão. Agora a biografia, claro que tenho que escrever, porque minha vida é de tal forma corajosa, inspiradora, para os malucos como eu. Sou testemunho vivo de que é o sonho que nos move, leva para frente. Acreditar, esse sou eu, perseverar, não ter medo. Medo é uma palavra que não existe no meu dicionário. Pode me empurrar, abrir a cortina que eu vou, não quero nem saber. Dormi psicólogo e acordei carnavalesco da Beija-Flor, que medo que nada. Pode dizer no ar que vamos lá, e vamos fazendo. Vou continuar, não vou me aposentar não.
Como está tua vida agora, que projetos estás tocando?
Há oito anos sou contratado da TV Globo, e a partir de setembro eu gravo um programa chamado “Enredo e Samba”. Esse ano visito as 13 escolas do grupo especial - mas já houve ano em que foram 14 - e faço gravações extensas sobre o enredo da escola, explicando para o telespectador. Depois toco samba, danço nas comunidades, vou aos morros, às quadras, algo que dá muito trabalho, são gravações intermináveis. Faremos então 13 programinhas que irão ao ar dentro do RJ TV 1ª edição [telejornal diário da afiliada carioca da Rede Globo]. Estou chegando, neste exato momento da entrevista [concedida por telefone], do Morro do Tuiuti, amanhã vou de novo, pela terceira vez, na Mangueira. Já fiz [entrevista com a cantora] Alcione, amanhã vou fazer Buraco Quente, e fiz as gravações extensas do Zorra Total. É muita entrevista, muita gente pedindo vídeos, encomendando mensagens. E tem uma coisa que são os bailes, que faço muito. Baile dos Passistas, Baile dos Destaques, o Glam Gay, dou aula nas universidades, aulas magnas, viajo muito, faço muita assessoria técnica de carnaval. Estive em Belém dando palestra para as ligas das escolas de samba, estou indo semana que vem para Manaus (AM), para uma Feira de Natureza. Cheguei do Amapá, fui ao Rio Grande do Sul, a Guaíba. Muita coisa, muita gente, muito trabalho, muita correria, muito avião e está tudo ótimo. Era assim que tinha que ser. Nasci para isso.
Como essa rotina tão intensa encontra e se ajeita com a sua vida pessoal?
Sou casado há 12 anos com o Eduardo Costa, que é professor de Educação Física e dançarino popular, passista de escola de samba, um projeto da vida dele que colocou em prática só depois de a gente se conhecer. Eu tenho a minha vida, ele tem a vida dele e temos nossa casa em Copacabana. A gente adora filme, cinema, ler jornal, conversar, e fora isso ele respeita completamente o meu papel cultural, meu personagem, minhas idas às gravações, às quadras, e eu respeito a carreira dele. É um modelo que dá certo. Ele é muito mais discreto e recluso do que eu, mas que vira um artista ao subir no palco. A vida está ótima, o casamento está ótimo, sempre falo com muita naturalidade quando perguntam. Só que isso não vem na minha frente. Meu personagem chega antes, depois é que as pessoas vão ver que tenho uma vida direita, normal, caseira. Porque pode parecer, e muita gente chega me trazendo papelote de cocaína, maconha, e mal sabem que já nasci louco! Uma champagnezinha vai bem - deviam trazer uma garrafa, se possível Cristal Picot. O que estou querendo dizer é que sobrevivi porque sou drogas ilícitas zero. Sou muito doido [risos]! Tenho uma alegria, uma energia, sou solar. Me acordo sozinho, olho no espelho e digo “bom dia, belezura!”, eu sou desses. Há uma alegria, um regozijo na minha alma por eu ser do jeito que sou e não ter negociado. Não há tristeza. Para todos os meus fantasmas eu digo “oi, fiquem aí porque vocês perderam a existência”. Sou movido ao prazer, a uma esperança do futuro que vai raiar. Naquela madrugada, naquela manhã, quando o meu pai esperou eu descer com a mala de papelão, estava amanhecendo o dia, aquele lusco-fusco. Pensei “ai, meu Deus, vai ter briga, ele não vai querer que eu vá, mas eu vou”. Quando desci, ele disse que iria me levar na rodoviária. Pensei “eita, olha isso”. E nós dois entramos no carro dele e as lágrimas desciam no meu rosto e no dele, e ele me disse “tu estás fazendo o que eu deveria ter feito na tua idade, devia ter ido embora”. E eu disse “pai, tu não fez, tu perdeu a tua chance, agora é a minha e eu tô indo”. O dia raiava para mim, para São Brás, para a rodoviária, para o mundo, para os esperançosos, para os loucos, para os sonhadores. E que o dia raie para todos os que lerem essa entrevista e que não morra a chama da crença de que o mundo é melhor quando é diverso. Cor de pele, sexualidade, conta bancária, grau de instrução nada disso define caráter, competência, que as oportunidades sejam para todos. Que o mundo encontre em cada ser humano a grandeza, a beleza, e que ninguém precise fingir para ser feliz. A felicidade é dos verdadeiros.