Uma iluminação muito sutil marca o corpo da personagem principal no palco. Os figurinos são delicados e o branco alterna com tons pastel nas roupas e no mobiliário sóbrio. Ao fundo, em clima de tranquilidade, ouvimos uma suave trilha sonora, na mais leve harmonia com o ambiente. Estamos na plateia do Teatro Municipal, no centro do Rio de Janeiro, na noite de estreia do mais novo espetáculo da coreógrafa Deborah Colker, atualmente em turnê pelo Brasil. Livremente inspirado no clássico francês “A Bela da tarde” (“Belle de Jour”, filme de 1967, dirigido por Luis Buñuel, com Catherine Deneuve no papel principal), “Belle” conta a história de Séverine, uma mulher casada com um profissional bem-sucedido e que, movida pela ânsia de transgressão, tem sua rotina balançada após uma inesperada descoberta. O tédio e a insatisfação com sua vida sexual no casamento a levam a visitar um bordel pela primeira vez.
A cena em que Belle está solitária no centro do palco representando uma tentativa de resistir às suas pulsões dá origem a uma imagem que já entrou para a galeria das mais marcantes no repertório de movimento da coreógrafa. “Ela nunca tinha ido a um bordel antes. Então, quando retorna dessa experiência, passa a imaginar”, descreve Deborah. À flor da pele e estimulada pelo que observou no bordel, Belle passa a ter visões, delírios eróticos que a colocam em contato com seu próprio desejo por meio do corpo. Logo atrás da personagem, há uma enorme trama branca muito tênue, um tecido quase translúcido, onde são representadas essas tensões. É justamente o momento em que o seu conflito interno atinge o auge, sendo também o ápice do espetáculo. “A coexistência entre a carne e o espírito, entre o desejo e o amor, é impossível, mas inevitável. Essa mulher se divide entre duas servidões. Essa é uma questão humana, de todos nós”, defende Deborah.
As cortinas se fecham e “Belle” volta a ser Séverine. Vemos novamente a personagem em sua casa, no mesmo local em que seu marido a encontra, a cada noite e todas as coisas de sua rotina estão exatamente no mesmo ponto em que ela as deixou antes da visita ao bordel. “Na verdade, toda a história [incluindo a alta carga de luxúria do segundo ato] pode se passar na cabeça dela. O bordel pode ser só uma fantasia”, deixa em suspenso a coreógrafa.
Ao longo desse percurso de pouco mais de 20 anos, Deborah, que estudou piano ainda jovem, foi atleta na adolescência e fez faculdade de psicologia, já explorou diferentes temas e foi em busca de inspiração para suas coreografias em universos tão distintos quanto o dos esportes, o da psicanálise, o das artes plásticas e o da literatura. E como isso tudo se relaciona em sua obra? “Gosto de conectar o mundo contemporâneo com a dança e trazer as questões do mundo para dialogar com o corpo e o movimento”, revela. Estabelecer uma relação entre sua invenção na dança e os campos de interesse e de atuação da própria Deborah não é, portanto, um raciocínio equivocado. “A minha dança se relaciona com o teatro, a literatura, a música, a arquitetura, as artes plásticas, os esportes, a psicanálise. Então, as experiências e o conhecimento que tive me ajudam e me inspiram nessa relação”, pontua ela, que já comandou a comissão de frente de escolas de samba como a Imperatriz Leopoldinense, no ano passado, e é a única mulher a ter em seu currículo a assinatura de uma coreografia criada para o Cirque du Soleil (Ovo, de 2009, ainda não apresentado no Brasil).
Nesse processo de experimentação, pesquisa e junção de diferentes universos e referências pessoais empreendido pela coreógrafa, há um perceptível esforço por superar os tradicionais clichês na dança, em criar uma linguagem particular – e até mesmo popular – dentro da dança contemporânea. É o que defende o ensaísta Francisco Bosco, que analisou sua obra no livro comemorativo. “Penso que Deborah tem um gesto claro no sentido de abrir a dança contemporânea para um público amplo, recusando certa especialização característica de todas as linguagens artísticas a partir de fins do século XIX e começo do XX. Ela mobiliza diversos recursos para atingir isso. Um deles é enfatizar o trabalho, que é um valor reconhecível para o público não-especializado. Numa coreografia sua, o espectador não tem aquela desconfiança típica que o acomete diante de certas obras modernas e contemporâneas ‘Mas isso é arte? Até eu faço isso!’ etc. Há um desejo pop na obra de Deborah, dentro de uma linguagem artística especialmente insularizada”,observa.