Pequeno ensaio sobre o nada

Emanuel Matos compartilha 10 poemas que falam sobre uma gaiola de verdades prontas e acabadas

25/03/2023 09:00
Pequeno ensaio sobre o nada

PEQUENO ENSAIO SOBRE O NADA 

I - O SONHO 

Sonhar para seguir em frente,

Para não morrer em vida.

Sonhar para alimentar o sonho

Para sabê-lo motivo e não o fim.

Saber da causa final

Um horizonte que se expande.

Deixar a alma crescer;

O corpo perderá para a matéria.

Embriagarmo-nos, assim,

Como um dia ensinou Baudelaire.

Aprender que a vida é sonho

E os sonhos, sonhos são, Calderón.

Embriagar-se de amor

E embeber o chão, lavrá-lo ao fruto.

Ao impossível dê-se o crédito,

Há sempre por aí, um mistério.

Deixar-nos levar pelo tempo.

Não sabemos da nossa hora.

Os deuses não se cansam,

E somente nós somos datados.

II - O PESADÊLO

A revelação crescente

Da decadência humana

Poderia ser razão

Para se cuidar das linhas 

Que a vida tece para dentro

De nós mesmos, seres,

Perdidos em fugas.

Aprenderíamos a voar mais alto

E a ver as coisas no seu devir.

A transcendência social

É pequena e redundante

E nós temos toda a imensidão

À nossa disposição.

Duvidar do homem, amando-o,

Afinal, somos ladinos.

E nossas frustrações nos levam

A querermos, ser deuses.

Voar, voar como pássaros.

Pássaros sem asas

Na direção do infinito, 

Sempre mais alto, ao possível, 

De todos os sonhos

Guardados a sete chaves

Nas dobras e sombras da alma

E em nossos corpos, feridos,  


III - DEPOIMENTO PARA O MUSEU DO NADA 

Generosa

A vida só não me deu

Um fiapo de genialidade.

Mas aí já seria demais

E causa de perdição

Pra minha alma pequena.

Não tenho sexto sentido

E estou sempre mudando

As minhas conclusões.

Se houver outra chance

Queria ser menos pedra

E bem mais coração.

O que mais gosto

De tudo o que recebi

É este não saber de mim. 

Tenho uma inveja

Das pessoas que dizem

Eu penso que..............     .

Eu nunca que penso.

E têm sempre muitos

No meu pensamento.

Minha identidade é "outros".

Na minha cédula minto

Porque é assim que desejam.

O meu epitáfio será:

"Aqui não jaz ninguém”

Por favor, não insista.”  


IV- A NEGAÇÃODOS RIOS 

Lá por onde eu andava

Sempre acabava num rio,

Partindo quando eu chegava

Deixando um rastro frio. 

E pra onde eu me virava

Outros rios também iam.

O rio das horas contava

O tempo que nunca volta

Deixando os seus teréns. 

O rio das palavras que voam

São águas indo ao vento

Deixando versos nas beiras

De alegrias ou de lamento. 

O rio dos sonhos passava

E de tanto sonhar aprendi

Deixar os sonhos viverem,

Nesse viver de partir,

Nos rios que sempre vão. 


V - A ENSEADA  

Não sei 

Do que se trata

Não saberei nunca

Do que se trata,

Não obstante, 

Acho a vida linda. 

Pela frente

Tenho a eternidade.

O que posso mais desejar? 

Ontem, ainda ontem,

Tudo era muito novo

E hoje continua.

Não dá pra perder tempo.  


VI - IR POR AÍ 

Ir por aí

Bem mais além do horizonte

Para um mundo sem ponte

Um vazio sem terra e céu

Onde se desvele o mistério 

Que se põe

Entre a razão e essa loucura

Da insaciável alma.

Pode não ser uma solução

Mas uma viagem necessária.

Ir por aí

Sem destino além do definido

Como se pra dentro se fosse,

Onde está o grande infinito

E o sentido de todo caminho.

Onde moram os sentimentos

E a forma perfeita da matéria

A quem nosso amor se destina

E a cegueira das fantasias

Nos leva pra longe e as elimina. 

VII - BILHETE DE PERTO DA FOZ 

Meu amigo não me leve a mal,

Confesso eu estou muito bem.

E claro que sempre falta algo

Como a presença da amizade.

E se você puder aparecer

Venha que nunca será tão tarde.

Incrível, mas a turma debandou.

E é claro doeu, sem alarde.

Parece que ficou um vazio

Como se o tempo não andasse. 

Quem sabe a gente se vendo

O tempo possa voltar

E tudo volte a ser como antes

Como quando o mundo ia mudar. 

Estou indo como posso,

Mas sem perder a valentia,

Nem aquela alegria de ter voz

Pra gritar quando a coisa aperta

Como se estivesse perto da foz

Sem alguém pra nos avisar.

Meu amigo não me leve a mal,

Eu estou muito bem e vou indo

E queria que você fosse comigo.

Eu só queria poder lhe abraçar. 


VIII - JOGO PESADO 

O mundo mudou.

Foi mais esperto,

E mudou,

Antes que o fizéssemos.

Enfiou-nos numa gaiola

E diverte-se conosco

Com mentiras, fábulas

E tramas do velho capital,

Agora sedento da América Latina.

Mas, antes, sucatando-a. 


IX - A GAIOLA DOS PAPAGAIOS 

Apagadas as luzes

Do Iluminismo,

Pela ideologia

Do ativismo infantil

E o politicamente correto,

As razões adormeceram. 


A desinformação ganhou,

Alojou-se nas comodidades,

A militância, virou competência.

Não era mais hora

De entender o mundo,

Mas de transformá-lo, de vez. 


Mais esperto, o mundo

Mudou antes e criou uma gaiola

De verdades prontas e acabadas.

Presos, viramos papagaios. 


X - EPIGRAMA

Morro

De fome de infinito.


Mais matérias Emanuel Matos

publicidade