Nascida no ano de 1929 em Matsumoto, uma pacata província nos Alpes japoneses, a pouco mais de duzentos quilômetros de Tóquio, Yayoi Kusama vem de uma família burguesa tradicional muito conservadora. Seus pais eram proprietários de um viveiro de plantas na periferia da cidade e ela e seus três irmãos frequentavam a escola local. Ainda criança, logo demonstrou interesse pela pintura, mas o desejo de desenvolver sua habilidade foi abruptamente impedido pela mãe. Após muita insistência com a família, ela consegue entrar na Kyoto Escola Municipal de Artes e Ofícios, onde estuda segundo a técnica da pintura tradicional japonesa, de estilo formal e rigoroso - uma rigidez que ela detestava, mas que suportou até a conclusão do curso. A primeira reviravolta em sua carreira artística se dá em 1957. Influenciada por uma amiga, a norte-americana e também pintora Georgia O’Keeffe, a ir para a América e deixar o Japão pós-guerra, ela encheu sua mala com desenhos e rumou para os Estados Unidos.
Segundo explicam Philip Larratt-Smith e Frances Morris, os curadores da mostra "Obsessão Infinita", a primeira retrospectiva da artista a ser apresentada na América Latina e que passou pelo país, recentemente, pelas cidades do Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo, "a prática pictórica de Kusama deu lugar a esculturas flexíveis conhecidas como 'Acumulações': objetos de uso diário como bolsas, cadeiras, escadas de mão e sapatos cobertos com elementos de pelúcia semelhantes a falos (a chamada série 'Obsessão Sexual') ou com massa seca (série 'Obsessão por Comida')", escrevem no folder da mostra. Ao entrar em contato com a cultura norte-americana, a artista teria expressado algumas reações negativas ao estilo de vida local, desenvolvendo repulsa àquela sociedade no que se refere às atitudes liberais dos Estados Unidos em relação ao sexo, o consumo excessivo do mundo ocidental e a cultura do fast food.
Não demoraria para que Kusama manifestasse uma forma de arte ainda mais particular, que surge de seus transtornos, medos, traumas e de suas visões alucinatórias. As bolinhas que pontuam seus trabalhos, ora monocromáticas, ora coloridas e até mesmo fluorescentes, seriam uma representação dessas visões perturbadoras que atormentam sua mente desde a infância, e que ela reproduz obsessivamente, como "forma de se acalmar", segundo afirma, e de conectar o seu universo interior à infinitude do cosmos. "Quando eu estava desenhando, os padrões iam se expandindo tanto que iam pra fora da tela, para preencher o chão e a parede. Então, quando eu olhava pra longe, via uma alucinação e ficava envolvida por essa visão. E foi assim que me tornei uma artista do espaço", descreveu.
Curiosamente, a excentricidade de Kusama atraiu os mais diversos públicos e caiu no gosto popular. Isso pode ser interpretado pelo expressivo número de visitantes em suas exposições. Só no Brasil, a passagem da mostra "Obsessão Infinita" recebeu um público de 750 mil pessoas, no CCBB Rio de Janeiro; 470 mil, no CCBB de Brasília; e 523 mil, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, batendo um recorde de visitação neste último. Outro fator que reforça essa tese é o conhecido apelo comercial de Kusama nos mercados de moda. Em meados dos anos 1960, ela já era dona da própria grife e, em 2012, fez uma parceria de sucesso de com a cobiçada Louis Vuitton, desenvolvendo uma coleção exclusiva de acessórios para a marca - que logo se esgotaram das vitrines.
Aos 85 anos, a artista vive hoje em uma clínica psiquiátrica em Tóquio, onde se internou voluntariamente em 1977, após retornar ao seu país, com problemas de saúde. Lá, ela recebe os mesmo cuidados que os doentes mentais e toma remédios diariamente - "exceto quando estou pintando", observou Kusama, em entrevista a um jornal do Rio de Janeiro, por ocasião da passagem de sua exposição pela cidade. A uma curta distância do hospital, está o seu estúdio, onde ela ainda produz, rotineiramente.
Na sala "Espelho infinito - Campo de falos" (Infinity Mirror Room - Phalli's Field), obra de 1965, umas das primeiras do tipo "instalação de ambiente", a artista utiliza um tecido com estampas de bolinhas vermelhas sobre fundo branco, estofado, moldado e costurado em formato de falos. Espelhos revestem as paredes e ampliam o horizonte do observador. A sensação é de se estar imerso em um campo infinito, mergulhado nos objetos fálicos, com bolinhas vermelhas. Ainda segundo os curadores da mostra, essa obra provoca uma experiência sensorial que recria a realidade psíquica interior de Kusama. "Esta envolvente instalação, de que o espectador também participa, expressa os vetores psíquicos gêmeos do narcisismo e castração que dão à arte de Kusama sua especificidade patológica".
Já a instalação "Sala espelhada ao infinito - Repleto de brilho da vida" (Infinity Mirrored Room - Filled with the Brilliance of Life), data de 2011, e explora ainda mais a sensação de estar diante do infinito. Trata-se de um espaço quase labiríntico, também formado por espelhos que revestem as paredes, mas iluminado com lâmpadas de led, que alternam de cor em intervalos de segundos. Os pontos se multiplicam nos espelhos laterais e refletem em parte do piso, coberto com água. É como estar envolvido em um sem-número de partículas coloridas e cintilantes que, à certa altura, se apagam e provocam o breu completo. A sensação de vivenciar algo muito próximo do que se descreve na teoria do Big Ben não é mera coincidência.
Em "Estou aqui, mas nada" (I'm Here, but Nothing), concebida entre os anos de 2010 e 2013, Kusama apresenta uma sala de estar aparentemente normal: tem-se uma mesa, cadeiras, sofás, poltrona e televisão. Um cenário doméstico corriqueiro de qualquer família de classe-média, não fosse a presença de inúmeras polka dots coloridas (como são chamadas as bolinhas que seguem um padrão, tendo um espaço idêntico entre elas). Adesivos de vinil e lâmpadas fluorescentes ultravioleta incidem sobre os objetos domésticos. Nesse ambiente em que os moradores estão misteriosamente ausentes, experimenta-se uma momentânea desorientação espacial, que vai de sensações alucinógenas ao sentimento de alívio e conforto familiar.
Em 1966, Kusama participa pela primeira vez da tradicional Bienal de Veneza. Um detalhe: ela não havia sido convidada. Vestida com um kimono dourado, apresentou cladestinamente e ao ar livre, sua instalação Jardim de Narciso (Narcissus Garden), que evoca o mito de Narciso. Composta por cerca de 1.500 esferas de metal espelhadas, em que o observador pode enxergar o reflexo de sua própria imagem e uma irônica placa explicativa: "Seu narcisismo à venda", em um gramado do lado de fora do pavilhão onde acontecia o evento. Kusama atraiu o público ao seu "tapete cinético", como denominou a obra, e passou a oferecer cada uma das esferas pelo valor equivalente a dois dólares. Não demorou para que a organização do evento interrompesse sua participação extra-oficial, retirando-a dali. Ela voltaria ao evento 27 anos mais tarde, desta vez como artista convidada.
Hoje, é possível observar uma versão dessa mesma obra no Brasil. O Instituto Inhotim, no município de Brumadinho (Minas Gerais), abriga uma "réplica" de Narcisus Garden. Localizadas no Centro Educativo Burle Marx, dentro do instituto, as 500 esferas de aço flutuam sobre um espelho d%u2019água, mudando de direção de acordo com o sentido dos ventos, e funcionam como espelhos convexos que distorcem e multiplicam a imagem de quem as contempla.