Pupilas dilatadas

Como um colírio que distorce a realidade, para só então torná-la clara, a fotógrafa Nati Canto buscou o ideal por meio da imperfeição.

18/06/2013 09:34 / Por: Camila Barbalho/ Fotos: Dudu Maroja
Pupilas dilatadas

Dom Quixote nunca conseguiu convencer os seus de que tudo era bem mais que moinhos de vento. Naturalmente, o personagem vestiu de bom grado o rótulo de louco, por lutar contra dragões que ninguém mais viu. Mas a linha entre o louco e o sábio é tão tênue que quase nem há. E se Dom Quixote nunca tivesse estado errado? E se não houver um único modo, um jeito certo, de enxergar o mundo? “Enxergar”, por si, talvez esteja muito perto de um sinônimo para “ser livre”; e quiçá moinhos de vento sejam as amarras que impedem de ver – e lidar com – os tais dragões pessoais, aqueles que todo mundo tem. A liberdade de enxergar requer coragem e uma dose diária de loucura (loucura?). O jeito certo de enxergar é o de quem enxerga. E enxergar, por si, exige que se aprenda a “des-ver” o jeito padrão.

É difícil ouvir Nati Canto falar e não pensar em liberdade. Forte, articulada, ligeiramente outsider e extremamente consciente, a fotógrafa paulista se permitiu (ponto). Desde nova, observou a si e ao seu redor sem a obrigatoriedade do senso comum. É claro que dragões apareceram, e não foram poucos. Por sorte, Nati estava desprendida do papel esperado de vê-los como moinhos, e lidou com eles. Mais que isso – os chamou para perto. Nas palavras que se habituou a dizer como um mantra, ela “assumiu seu pacote”: a carga boa e a carga ruim de ser quem se é. Essa honestidade consigo mesma, claro, reflete-se no seu trabalho – a artista renunciou ao “jeito certo” de ver para expor um olhar artístico extremamente íntimo, reflexo de suas vivências e sentimentos. Ironicamente, esse intimismo encontra eco dentro de quem vê suas fotos – o que ela vê, também vemos; não sob a mesma ótica, mas ainda assim novo. Coletivo e pessoal. É como se ela soubesse desde sempre que, lá no fundo, todos somos Quixotes dispostos a enxergar algo mais.

O pacote

A maneira como Nati se construiu como artista, bem antes de descobrir o que viria a se tornar, tem muito a ver com sua criação. Filha de mãe musicista e pai físico, dividindo a casa com três irmãos adotivos e dois biológicos, ela aprendeu cedo que a liberdade está em compreender as diferenças. “Meus pais eram dois idealistas, então eu me senti muito à vontade pra me tornar o que eu quisesse me tornar. Minha irmã mais velha também foi fundamental. Ela é terapeuta, e mostrou pra mim como a gente devia se conhecer”. Nesse processo de autoconhecimento, ela experimentou um bocado. Fez faculdade de jornalismo no fim da adolescência, movida pela paixão pela escrita. No curso, teve o primeiro contato com a fotografia, inspirada por um professor que admirava. Mas ainda não era o momento. “Eu tinha muita dificuldade em me enquadrar na rotina acadêmica. Aí um dia eu decidi que ia embora. Fui pra Inglaterra. Fiquei três anos lá. Não tinha dinheiro, não sabia nem tirar o visto”, relembra. Não parou por aí: disposta a viver coisas novas, Nati comprou uma passagem e foi dar a volta no mundo. “Passei seis meses viajando. Fui para a Austrália, Malásia, Nova Zelândia, tudo sozinha. Sempre fui muito solitária. Apesar de ter muitos irmãos, desde pequena eu nunca me identifiquei com grupos”.

Na Europa, a fotógrafa entrou em contato com obras de arte, leu a respeito, fotografou. Mas ter trabalhado com alguns chefs de cozinha durante o período a motivou a se aprofundar no assunto. De volta ao Brasil, resolveu estudar gastronomia. “Eu não queria fazer faculdade porque simplesmente tinha que fazer faculdade. Eu achava um absurdo as pessoas perseguirem um diploma, como se o diploma fizesse você. E tinha certeza que, quando eu terminasse gastronomia, não seria chef nem trabalharia em restaurante. Eu só queria fazer”. Em um primeiro momento, poderia parecer uma guinada brusca. Para ela, não. “Quando eu voltei pro Brasil, estava muito aberta a tudo. Tirei até carta de caminhão... Até hoje eu não sei dirigir (risos). Vivi essa busca pelo erro mesmo: ‘vou fazer jornalismo, vou pra Europa, vou estudar gastronomia... ’”.

Já em São Paulo, depois de visitar o mundo da culinária, conheceu a atriz e respeitada professora de moda Jô Souza – peça fundamental para Nati se tornar, de fato e em definitivo, fotógrafa. “Ela me convidou pra fazer alguns editoriais de moda. Com o tempo, fui fazendo cada vez mais trabalhos autorais, participando de editais de arte, sendo bem aceita... Em 2010, apresentei meu trabalho pra galeria que me representa há quase três anos. E começou um casamento que até agora vem dando muito certo. Foi quando eu pude começar a me assumir como artista”, resume. Quando perguntada sobre ter havido ou não certa resistência em adotar a arte como meio e finalidade da vida, ela responde de maneira muito simples e convicta. “Eu precisava passar por todas as coisas que passei pra também ter alguma coisa a oferecer”. E prossegue: “Foi quando eu decidi que não dava mais pra colocar meu trabalho na gaveta. Eu tinha que largar as pequenas coisas que eu fazia para ser artista, ser fotógrafa. É a hora que você se liberta, que assume o pacote de quem você é. As pessoas às vezes esperam que eu trabalhe de 9 às 17h, receba um salário fixo... Mas eu não podia fazer isso comigo. Era como se fosse me abandonar”.

Apesar de compreender a importância de ter se assumido artisticamente, Canto não se envaidece ou deslumbra com o que fez por si. “Você ser artista não é um privilégio acima da humanidade”, ela diz, precisa. “Na verdade, todo mundo pode ser artista. Mas você tem que se assumir. O lado bom e o ruim, a luz e a sombra. Não existe meio caminho”.

A neve. O sal. A chuva.

A consciência muito nítida de quem é e a fidelidade a si mesma foram dois dos três elementos essenciais para que Nati chegasse ao conceito do que viria a ser o trabalho divisor de águas na sua carreira. O terceiro, decisivo, surpreende: sua miopia motivou a elaboração de “A neve. O sal. A chuva – Lembranças particulares e coletivas”, série fotográfica realizada em três países distintos. Na contramão do óbvio, a artista decidiu que não gostaria de usar óculos quando se descobriu míope. Foi quando se deparou com o livro “Visão Consciente”, do oftalmologista comportamental americano Roberto Capro. Na publicação, o médico apresenta as diferenças entre enxergar (o processar da luz) e ver (a compreensão do que é enxergado em associação às vivências individuais), além de criticar certa “miopia social” dos dias atuais – o enxergar de circunstâncias imediatas e familiares, sem ver além. A teoria vestiu sob medida o pensamento da fotógrafa. “Eu fiquei muito interessada, porque gosto de trabalhar com essa coisa que vem de dentro, tanto individual quanto parte de uma identidade social. E ao mesmo tempo, eu queria questionar esse jeito control freak que a gente tem. A gente chegou num ponto em que quer ter o controle de tudo, tem que olhar certo, ‘olhar com esses óculos aqui’. Mas por que eu tenho que ver as coisas de jeito tão aguçado? Por que eu ver meio fora de foco é errado?”, argumenta.

Foi após refletir sobre tudo isso que começou seu processo criativo em busca do que seria seu próprio olho exteriorizado: uma maneira de a câmera reproduzir a maneira como ela mesma enxerga, proporcionando foco e desfoque no mesmo plano – e, de quebra, aliar o aspecto digital a certa gambiarra analógica, afastando o controle total do resultado. Para tal, foram várias tentativas. “Eu procurei muita coisa. Tampa de xampu, caixa de sapato... Comecei a testar, experimentei com o desentupidor de pia e rolou. Quando eu vi como ficava, pensei ‘é isso que eu quero’”. Além do experimentalismo instrumental, Canto se permitiu visitar universos geográficos e históricos bem distintos – e aproximá-los por meio da ressignificação que as memórias pessoais e coletivas proporcionam. Cada sequência temática foi fotografada em um lugar diferente: “a chuva” foi registrada no litoral paulista; “o sal”, no Salar de Uyuni, na Bolívia; e “a neve”, no extremo norte da China. “Eu queria usar lugares diferentes e fazer tudo muito branco... Era mais uma coisa de perder um pouco da informação ao redor, em favor do que eu queria que as pessoas olhassem”.  O resultado é um trabalho coeso, sensível e de profundidade inquestionável. Naturalmente, não há maneira de controlar como as imagens atingirão quem as observa. Mas isso não é uma preocupação para Nati. “Você não precisa ver minha obra como eu vejo. A obra não é um meio de comunicação, já que comunicar requer que eu fale e você compreenda. São monólogos alternados: eu falo uma coisa, você fala outra, e nem por isso nós estamos conversando. Cada um vê com o que tem dentro de si”.

Depois de um tempo, ela finalmente confessa sua inquietude, impressa em certo desconforto por continuar vinculada a um único trabalho. Não é renegá-lo – ela reconhece sua importância. É que Nati tem pressa. “Eu não quero ser uma artista de um trabalho só. Adoro o que eu fiz e o que esse trabalho significa pra mim. Mas eu preciso andar”.

Em movimento

Hoje, a paulista vive um momento de transição bastante frutífero. Convivendo com o luto de uma separação recente e com a euforia de uma carreira em pleno crescimento, ela abraça ambas as sensações com a mesma disposição de vivenciá-las. Aliás, essa é uma característica de Nati que salta aos olhos: os braços abertos para o que vier. “As pessoas não se permitem sentir muita coisa. Sentir raiva ‘é errado’. Mas é errado por quê? Eu tenho direito de sentir raiva, porque a raiva me movimenta. Como eu vou ser artista se não puder sentir?”, questiona, em mais um momento de sinceridade pungente – quase confundível com dureza, não fosse a serenidade com que ela fala sobre coisas tão particulares. É o que acontece em seguida: “Meu casamento acabou tem três semanas, e eu estou vivendo certo período de raiva. Acho que isso tá sendo ótimo pra mim, porque eu tô tendo que aprender muita coisa. As pessoas terem problemas não é problema nenhum. O problema é as pessoas não lidarem com isso. É você fugir de ser você”.

A despeito dos arranhões, o mundo segue girando. Assim também é para Canto, que não poderia esperar qualquer dor passar nem que quisesse. O bom momento a impulsiona para frente, e ela vai feliz. Convidada a representar a nova geração da fotografia por um site que oferece obras para colecionadores importantes, ela terá uma edição limitada de 50 fotos suas vendidas para pessoas que são peças-chave no mercado artístico. É empolgada que ela fala da nova fase: “Serei eu com uma nova direção, ao lado de Vicente de Mello, Christian Cravo e mais dois. São pessoas que são meus ídolos. É uma honra. É quando eu penso que eu tô no caminho certo”. O próximo passo será ainda maior – compreenderá um mundo inteiro entre o hoje e o amanhã. Nati está a caminho da China, onde ficará por três meses. “Ganhei um prêmio do grupo Swatch. Eles têm um hotel em Xangai, e escolhem dois artistas internacionais pra passarem uma temporada lá. Eu fui uma”. Depois de lá, só a vida sabe. “Eu não fico projetando as coisas. Prefiro pensar no que eu tô fazendo agora. Acho que o resto é natural. Você vai vivendo, seguindo o caminho, cortando o matagal”, ela ri. “E se conhecendo, olhando pra si, se espiritualizando. Não sei onde vai dar, mas acho que essa é a graça de viver”.

Engana-se, entretanto, quem acredita que ser artista é mero seguir de correnteza. “Eu tenho bastante disciplina. No meu ateliê tem datas pregadas, deadlines, portfólios. A maior parte do meu tempo é na frente do computador, escrevendo, estudando, me aprofundando pra ver o que eu posso tirar disso tudo”. Mas é possível ser rígido consigo e ser livre a um só tempo? Claro que é. Outra vez, é com precisão que Nati arremata: “Ser livre é ser responsável. Só não é livre quem não se assume”.

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