Há muitas versões daquilo que aprendemos a chamar de destino. Pode-se considerá-lo uma sina, tomada pelas curvas do inevitável. Dá para entendê-lo como uma dádiva, que, por sua natureza, não é passível de questionamento. E há a variável mais liberta, que é a que considera o destino um chamado. Sim, porque é quando se lê a sorte como um aceno dos planos da vida que se toma para si a decisão de acenar ou não de volta. Foi o que a fotógrafa Ana Mokarzel fez: devolveu conscientemente o cumprimento feito pelo destino - e em seu próprio tempo. Embora tenha reconhecido de cara sua vocação para a linguagem artística à qual se dedica hoje, foi preciso um longo caminho - e um reencontro despretensioso - para que o mundo das imagens se tornasse também o seu.
Ainda menina, Ana se deixou fascinar ao ver o pai com a câmera na mão. "Ele saía pra fotografar. Usava uma câmera, que inclusive ficou pra mim, junto com rolos de filme, tripé, fotômetro. Eu adorava acompanhá-lo, e queria brincar de fotografar. Ele me emprestava a câmera e eu fazia o book das minhas amigas", conta. Da época, permaneceu o equipamento - que rendeu uma tatuagem - tributo -, assim como o vestígio do que se tornaria sua percepção de arte. "Quando vejo, acho engraçado perceber que eu já trazia um pouco do olhar que tenho hoje - embora tenha sido aprimorado. Uso a câmera até hoje, e inclusive a trago tatuada em mim. Esse foi o meu marco". Apesar do encantamento precoce, o interesse pela Administração e o próprio desenrolar da vida a afastaram das lentes. O lado profissional a encaminhou para a criação de sua própria empresa de Recursos Humanos, e aquele primeiro sinal de amor pela fotografia foi engavetado.
Tudo poderia ter ficado assim mesmo, não fosse seu filho também ter se interessado pela grafia com a luz, há sete anos. Quando ele decidiu se mudar do país, Ana comprou dele sua câmera analógica e retomou a relação adormecida. Foi um caminho sem volta. "Era como se o bichinho tivesse me mordido novamente. Recomecei com a câmera dele, depois comprei uma digital. Comecei a aprender com os amigos dele. Iniciei um processo muito autodidata, aprendendo com os amigos, pesquisando na internet... Não parei mais", relembra. De hobby a trabalho, a fluência foi bem natural. Amigos passaram a pedir que Mokarzel fizesse books, ensaios fotográficos e coisas do tipo. "A partir daí fui evoluindo: comecei a fazer algumas coisas na área de jornalismo, a ser convidada pra expor meu trabalho... Quando fiz o primeiro curso de fotografia, já fotografava há algum tempo. Hoje, tem uma agência em São Paulo que vende minhas fotos. Já é uma parte da minha renda. Eu partilho esse tempo como posso. Os fins de semana, as noites, as folgas todas são voltadas para a fotografia".
A primeira grande inspiração para Ana foram as pessoas. Delas, sobretudo de crianças, veio a paixão por retratos e a identificação com o universo de cada um. "Essa troca é o que me fascina: poder chegar, conversar, compreender o mundo delas... E poder registrar isso sob minha ótica, sob minha percepção", ela diz. A partir daí, outras vertentes se mostraram espontaneamente. "O abandono da cidade é uma coisa que me intriga - o urbano, a agitação... São coisas que gosto muito. E mais recente, comecei a fazer um trabalho com light painting - pintura com a luz, por meio da lanterna".
O light painting, aliás, tem sido o sabor da estação em seu trabalho. Descoberta graças ao trabalho do carioca Renan Cepeda, a técnica ficou na memória de Ana até ela resolver contatar o fotógrafo. "Fui bater em Minas, fazendo um acompanhamento num processo em que ele levava uns fotógrafos para o Vale do Jequitinhonha. Passei dez dias lá, e então o convidei para vir fazer esse mesmo trabalho no Marajó. Ele topou e foi uma experiência maravilhosa", explica. "Reunimos um grupo de fotógrafos num misto de oficina e vivência nesse processo. A gente ficou lá por um período, e eu particularmente fiquei lá mais duas semanas acompanhando ele nessa experiência. Ele adorou, ficou encantado". À medida em que vem se aprimorando no aprendizado do light painting, Mokarzel se interessa ainda mais pelo que a técnica pode proporcionar. "A experiência está sendo uma enorme descoberta. É uma paixão antiga, e hoje me vejo capaz de fazer. Antes, me via muito distante dela. Hoje não, me vejo fazendo com certa tranquilidade. Fico feliz, porque não é uma técnica fácil. Mas também não quero usar a técnica pela técnica, porque isso não quer dizer nada. Eu quero colocar a minha assinatura".
A artista conta que sua estrutura familiar exerce uma influência inegável em seus caminhos - tanto os que a trouxeram até aqui quanto aqueles que a conduzirão adiante. O filho, que a recolocou em contato com esse universo, ainda hoje possui esse papel - mesmo de longe, morando nos Estados Unidos. "Quando estamos nós dois, é comum que a discussão se volte para a fotografia. É até engraçado: quando eu comecei a fotografar, ele não acreditava muito nem tinha toda aquela paciência de me ensinar certas coisas. E é muito bonito que, depois de um tempo, ele tenha passado a me procurar para tirar dúvidas comigo". A simbiose entre os dois ainda é muito forte e frutífera. "A gente sempre troca informações. Quando ele lê alguma coisa, me manda; quando vejo algo, mando pra ele. Às vezes, fazemos fotos noturnas juntos, fazemos exercícios... A fotografia se tornou um elo".
Além dele e de sua atuação mais efetiva, a irmã e o pai foram muito importantes na construção de seu apreço pelo mundo artístico. "Minha irmã é artista plástica, se formou em História e hoje é curadora. Ela é uma grande estimuladora. Meu filho é arquiteto, então ele tem essa coisa da beleza, da plasticidade. Meu pai, mesmo sendo engenheiro e não tendo essa obrigação profissional, era muito ligado às artes desde que eu me entendo por gente. Ele era pintor e fotógrafo amador, e era excelente. De alguma forma, então, a família toda tem essa relação e tudo acabou me influenciando". Todas essas fontes fizeram com que Ana se tornasse uma pessoa muito atenta ao que está ao seu redor, e muito disposta a compreender as diferentes manifestações. "Tudo de maneira geral, no que diz respeito à arte, me interessa. Tudo que é atrelado à sensibilidade. E me interessa porque me influencia. Tudo pode gerar algum insight", considera. E em sua troca com o mundo, também vê o caminho contrário: "tudo nosso é um autorretrato, traz a nossa assinatura. É a forma de eu ver, é o que é influenciado pelo meu sentimento, pela minha emoção".
O lado empreendedor da fotógrafa tem grande relevância para a maneira como ela cuida da circulação de seu trabalho. Além da agência paulista que vende suas fotos, ela também o faz em suas exposições - além de fechar parcerias interessantes. "Às vezes, as pessoas se interessam e eu faço a negociação direta; a Paratur também compra... Eventualmente, demandam meu trabalho para compor banco de imagens. São várias formas de comercializar. Por exemplo, já prestei serviço para a Reuters, que é uma agência inglesa". Mas não é só aí que ser uma administradora em seu ramo auxilia em seu crescimento dentro da outra profissão. Segundo Mokarzel, as duas se complementam. "Como eu trabalho na gestão de pessoas dentro da minha empresa, isso me dá a veia para ser minha própria empresária na fotografia. Eu me organizo, me planejo, mostro meu trabalho de maneira mais elaborada. E lidar com grupos na minha empresa me ajudou a chegar às pessoas para fotografá-las. Eu lido com elas, com os conflitos, seus processos... Isso fez muita diferença. Por outro lado, a fotografia me ensinou a olhar para a minha empresa com mais leveza e criatividade".
A única coisa negativa, de acordo com Ana, é o tempo. Aqui e ali, é necessário que ela abra mão de atuar em uma de suas áreas de aptidão, porque as agendas coincidem. "Quando não dá pra negociar, preciso perder um lado. Quase sempre é o da fotografia", desabafa. Mesmo assim, ela não pensa em optar por um segmento em detrimento de outro. "Gosto tanto das duas coisas que não me vejo fazendo uma escolha. Talvez precise fazer um dia, mas hoje uma carreira alimenta a outra. Às vezes, o trabalho da fotografia também é estressante, e eu preciso respirar na outra profissão; e vice-versa".
Sobre a democratização da fotografia - a explosão de smartphones e aplicativos voltados para o tema -, Ana Mokarzel adota uma visão libertária. Para ela, o instrumento é feito por quem o utiliza, e não o contrário. Além disso, ela defende que a pluralidade das maneiras de comunicar também não deve ser restringida. "Eu acho que é extremamente limitador, de todas as formas, nós sermos obrigados a escolher uma única forma de expressão. Quem diria que o fotógrafo poderia virar videomaker? Quem diria que cineastas poderiam ser fotógrafos?", questiona. "Com o telefone, eu me sinto invisível. Se eu estou fazendo fotojornalismo, e estou com uma câmera com uma lente enorme, todo mundo olha pra mim. Cadê a naturalidade que eu quero? Eu perdi. Com o telefone, as pessoas não estão nem percebendo e eu tô fotografando - quando eu quero esse tipo de foto, claro. Às vezes, a gente quer chegar perto, entrar na intimidade de quem registra. Aí não posso ter uma lente grande, preciso ter uma lente curta", enumera.
Ela ainda vai além, quando derruba a barreira existente entre aquele que se profissionalizou e o que optou por outro caminho. "Eu não posso restringir dizendo que só é fotógrafo quem tem uma câmera profissional. Temos fotógrafos amadores divinos, que são talentosos, que expõem... Temos fotógrafos profissionais que trabalham hoje com o iPhone, e não deixam de ser profissionais por isso. A gente não pode querer limitar o outro. Temos excelentes fotógrafos que nunca ganharam nada com a fotografia", analisa.
Depois de argumentar em prol da expressão livre, ela entra na questão nevrálgica de sua própria concepção artística: a importância da profundidade e do significado, que ultrapassa a habilidade por si. "A técnica vazia não significa muita coisa. Não dá pra querer dizer que é só borrar uma imagem e ela vira artística. Não é só borrar. É tudo que aquela foto borrada passa de sentimento, de emoção. Cor, luz, sombra. Fotografia é isso". O ponto final de Ana no assunto é de uma beleza abnegada. Ela não quer o mérito restritivo do domínio da arte. O seu interesse é no sentimento - e este não é nada exclusivista. "Eu fico aflita quando vejo alguém dizer 'isso não é fotografia'. Não é sob a ótica de quem? O que é fotografia? Eu quis entender de fotografia, de luz, técnica, justamente pra quebrar todas as regras. Quando eu as aplico, eu sei o que estou fazendo. Tem gente que escolhe não estudar nada, e que só quer se expressar. Não acho que essa pessoa seja menos fotógrafa que eu".